Trajando a imponente farda soviética, o encarregado de checar o passaporte fixou o olhar em mim. Várias vezes comparou minha expressão à foto no documento. Desembarcava eu em Moscou, em 1990, para iniciar quatro anos na capital russa como correspondente da Folha.
Ecos da recém-terminada Guerra Fria ainda ressoavam. A temida KGB sobrevivia, apesar do mergulho da União Soviética em um estado comatoso, para desintegrar-se no ano seguinte.
Os segundos em que permaneci estático, diante do controle de imigração, pareceram uma eternidade. O olhar cortante do funcionário soviético começou a me incomodar.
O jovem pronunciou a palavra-chave. "Cigarro?". Fingi não entender. Mas já havia sido avisado sobre o poder mágico, no universo da escassez soviética, de maços de Marlboro, com intuito de abrir portas. Tentei então transparecer incredulidade. Sem insistir, o jovem tascou um carimbo no visto de entrada e devolveu o passaporte.
Lembrei-me do episódio recentemente, em um retorno a Moscou. Na imigração do aeroporto de Domodedovo, dispositivos eletrônicos e formulários em papel escaneiam opiniões de viajantes, com pedidos para avaliar o trabalho dos funcionários e indagando se houve pedido de suborno.
Em um quarto de século, a sociedade russa passa por mudanças abissais. Acompanho o país in loco desde 1985, quando, empurrado por curiosidade estudantil, cheguei a Leningrado, hoje São Petersburgo. Naquele ano, em março, Mikhail Gorbatchev, responsável por deslanchar as reformas da perestroika, assumiu as rédeas do Kremlin.
Guardo reminiscências também da chegada ao aeroporto de Leningrado. Vinha em excursão turística. Levamos três horas para atravessar controles burocráticos. Revistaram minuciosamente a bagagem, em busca de material "antissoviético".
Chegar agora a Moscou não demanda de nós, brasileiros, nem mesmo visto de entrada. Passar por controle aduaneiro se desburocratizou, em comparação ao passado.
Vagar pelo metrô moscovita evidencia novos ares. Décadas atrás, passageiros sem opções liam páginas de jornais insípidos como o "Pravda", porta-voz do regime comunista. Hoje, consomem bytes em celulares, graças ao wi-fi disponível nos vagões.
A Rússia pós-soviética permite naturalmente uma miríade de leituras. A fotografia instantânea do regime de Vladimir Putin, iniciado em 2000, aponta a sobrevivência de mazelas como corrupção e autoritarismo.
No entanto, a comparação com o passado recente desvela câmbios tectônicos, impulsionados pelo surgimento de uma classe média, com aspirações e reivindicações, e, sobretudo, por mudanças geracionais, responsáveis por questionar modelos autoritários herdados de séculos de czarismo e de regime soviético.
Na Moscou em transformação, parei em um bar em plena praça Vermelha, às portas do sofisticado shopping center Gum. Na mesa ao lado, dois jovens casais de turistas, com máquinas fotográficas de última geração, registravam imagens daquele momento de embalado consumismo. Eram vietnamitas. Os patriarcas comunistas Vladimir Lênin e Ho Chi Minh não acreditariam nessa cena.
Texto de Jaime Spitcovsky, na Folha de São Paulo.
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