domingo, 17 de julho de 2016

Raça e história

Em 5 de julho, em Baton Rouge, Louisiana, mais de duas testemunhas gravaram a morte (a execução) de Alton Sterling, 37, negro. Foram quatro tiros, disparados por um policial, quase à queima-roupa, enquanto Sterling estava imobilizado, no chão.
No dia seguinte, em Falcon Heights, Minnesota, a morte (a execução) de Philando Castile, 32, negro, foi gravada pela namorada, Diamond Reynolds. Também foram quatro tiros, disparados por um policial. No banco traseiro do carro estava a filha de Reynolds, 4 anos.
No caso de Sterling, a polícia respondia a um chamado que assinalava a presença de um homem negro de camiseta vermelha, o qual teria mostrado sua arma a alguém. Castile e Reynolds foram apenas parados por uma lanterna traseira quebrada.
No dia 7, em Dallas, Texas, Micah Johnson, 25, negro e veterano, matou (executou) cinco policiais brancos (e feriu mais nove), que estavam acompanhando um protesto do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam).
Você se lembra do espancamento de Rodney King, em 1991? Para quem não viu na época: https://www.youtube.com/watch?v=sb1WywIpUtY. Em 1992, quando os policiais espancadores foram absolvidos, os protestos fizeram 53 mortes só em Los Angeles, no meio de saques e incêndios. Durante os protestos, Reginald Denny, 36 na época, branco, motorista de caminhão, enveredou pelo caminho "errado" e quase foi morto a pancadas.
Parece simples: vocês matam um dos nossos, nós matamos um de vocês. Mas o que são, como se constituem, no caso, o "nós" e o "vocês"?
Um exemplo. Não tenho nenhuma simpatia por sentimentos nacionalistas. Ao famoso "my country, right or wrong" (meu país, tanto faz que ele tenha razão ou não), prefiro sempre "meu país só se ele tiver mesmo razão". E poderia dizer algo análogo para a família.
Ou seja, só sinto que pertenço a grupos aos quais me ligam histórias, valores e ideais compartilhados. Tento não pertencer a nenhum grupo "naturalmente", só porque nasci aqui ou ali, branco ou preto, homem ou mulher, nesta ou naquela família.
Sei que as identificações coletivas são insidiosas. Às vezes, expulsas racionalmente, elas voltam às escondidas. Alguém é contra a política, as ideias dominantes, a cultura de seu país, e eis que ele se emociona na hora em que escuta as letras bregas do hino nacional.
Entendo, mas não consigo acreditar que isso aconteça comigo e a "raça". Quando respondo à pergunta do Censo, estou designando o que com este "branco"? Uma diferença irrelevante no DNA, se não na aparência? Por que não me identificar com a turma dos olhos castanhos, dos cabelos crespos ou dos pés levemente chatos?
Se tenho a sensação de fazer parte da espécie humana, não é por razões zoológico-classificatórias (ou seja, naturais), mas porque a própria ideia da universalidade da espécie humana tem uma história, que compartilho.
Será que pertenço a uma raça pela tonalidade de minha pele? Duvido: no jogo de talião que evoquei no começo, os brancos e os negros não são realidades biológicas, mas identidades definidas pela história da escravatura nas Américas.
Por mais que o tempo passe, o que há de intragável no nosso passado não se apaga –quando parece esquecido, volta e assombra nosso presente com todos seus fantasmas.
Do ponto de vista da psicologia clínica ou da psicanálise, o problema não é que o racismo teria permitido a escravatura: é que o passado escravagista continua produzindo rebentos monstruosos, que vivem no nosso presente, como o racismo.
Faz tempos que, nos EUA, psicólogos clínicos negros falam da existência de um Transtorno de Escravatura Pós-Traumática. Joy DeGruy, por exemplo, fala de Síndrome de Escravatura Pós-Traumática como "condição (coletiva) que existe como consequência de opressão multigeracional de africanos e de seus descendentes". DeGruy descreve a síndrome como falta de "estima primária" (desamparo, depressão, perspectiva autodestrutiva), propensão à raiva e violência, racismo internalizado.
Só acrescentaria que a Síndrome de Escravatura Pós-Traumática é uma condição que aflige também os descendentes de donos de escravos, os "brancos" –de maneira diferente, mas não menos grave.
Para conferir o site de DeGruy: http://joydegruy.com.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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