Em março de 2001, recebi uma ligação de meu amigo rabino Henry Sobel com um pedido honroso, mas insólito: que eu viajasse de São Paulo a Brasília com Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz.
Naquele tempo, eu trabalhava como assessor técnico na Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Conhecia o trabalho de Wiesel, havia lido seu livro "A Noite", mas nunca pensei que o encontraria pessoalmente.
A ideia de Sobel era que nos encontrássemos todos em São Paulo e que eu os acompanhasse até Brasília, onde Wiesel seria condecorado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso com a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco. No caminho, eu brifaria Elie Wiesel sobre a situação geral dos direitos humanos no Brasil.
Encontramo-nos pela manhã e seguimos juntos para o aeroporto. No avião, cedido por algum benemérito da comunidade judaica, sentamos lado a lado, e eu me lembro de ter falado sobre racismo, violência policial e situação nos presídios. Também falei da dificuldade que enfrentávamos para conseguir implementar em âmbito estadual os compromissos e padrões aceitos pelo Brasil internacionalmente.
Ele se mostrava interessado e tomava notas. Ao final de minha explicação, perguntou-me: "o que podemos fazer a respeito?"
Depois disso, ele quis saber o que eu fazia e quais eram meus planos profissionais. Sorriu quando lhe falei que estava escrevendo um romance. Disse-me que o segredo era escrever todos os dias, mesmo que fosse " um pouquinho".
Ao fim da cerimônia de condecoração no Palácio do Planalto, despedimo-nos. Eu ficaria em Brasília, onde morava; ele seguiria seu roteiro de viagem. Essa foi a última vez que Elie Wiesel veio ao Brasil.
Com seu falecimento neste fim de semana, fica claro para a história que ninguém personificou o sobrevivente do Holocausto nazista como ele. Wiesel sobreviveu com a missão de dar voz e figura à vítima, cuja presença -no caso, a dele- diante dos abusos deve sempre evocar a mesma pergunta que ele me fez no avião: "O que podemos fazer a respeito?"
Para mim e para muitos defensores dos direitos humanos, essa pergunta foi o maior legado de Elie Wiesel.
A comissão que lhe concedeu o Prêmio Nobel em 1986 chamou-o de "mensageiro para a humanidade", "em uma era em que a violência, a repressão e o racismo continuam a caracterizar o mundo". Em comunicado oficial, o presidente Barack Obama chamou-o de "consciência do mundo".
Com sua voz e sua presença, Elie Wiesel corporificava a promessa tão importante para quem sofre abuso de que as forças que combatem o mal podem, sim, sair-se vitoriosas.
Ele deixa um exemplo de resistência utópica que a comunidade de defesa dos direitos humanos deve compartilhar e promover. Também deixa o exemplo da vítima que se pronuncia contra o abuso que sofreu.
Mas as perguntas que não querem calar seguem sem resposta: O que fazer a respeito de quem sofre? O que fazer para que não sofram mais? O que fazer para não nos tornarmos passivos diante do que nos deve ser inaceitável?
Texto de Alexandre Vidal Porto, na Folha de São Paulo.
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