Foi uma garrafa de canha que transformou Pereirinha num lobisomem. Era o que diziam lá na Vila Rica. Nunca ninguém duvidou, vou duvidar agora, tantos anos depois?
Conto:
– O Pereirinha se borrava de medo do velho Nicão, a quem apontavam como responsável pelo desaparecimento de cordeiros e de terneiros pela vizinhança, normalmente nas sextas-feiras enluaradas. Nicolau Nochero, o Nicão, viera da banda oriental há muitos anos e se instalara no povoado. Era um homem que sabia fazer quase tudo, consertava alambrados, escavava poços de águas límpidas, fazia açudes e era bom construtor de mangueiras. Com o tempo, viúvo e morando sozinho, se mudou para o rincão das Almas e começou a ter atitudes e hábitos estranhos. Contam que em determinadas noites rolava o corpo nos estercos das vacas e se transformava em lobisomem. Depois saía a passar por encruzilhadas. Cumpria a sina, uma vez por mês de correr por sete cruzamentos e voltava para casa extenuado, estropiado. Algumas vezes os fazendeiros, armavam tocaias para evitar os ataques aos rebanhos. O lobisomem ganhava balaços e, antes do amanhecer, já no rancho, voltava à forma humana cheio de dores. Gemia dias até que as feridas cicatrizassem e então abria as janelas e saía de casa. E passou a beber de forma desesperada, inconformado por ter que carregar aquele fado.
Velho, o Nicão não conseguia mais levantar da cama. Morava num ranchinho de pau-a-pique e, sem amigos, só dormia e bebia. Dia e noite. Precisava passar sua maldição para um sucessor, senão não morria. O sangue contaminado corria por suas veias. Ele não havia sido mordido, nem nada, apenas herdara o fado de seu pai que era lobisomem uruguaio, porque os lobisomens não têm fronteiras, nem língua, nem credos, o senhor e a senhora sabem disso. Por isso, vivia agora em agonia, precisava de um desafortunado que aceitasse a missão de urrar pelas noites de luar, cruzar encruzilhadas, atacar terneiros, crianças e rezar para que nunca fosse atingido por uma bala de prata com cruz na ponta.
Então, surgiu o Pereirinha, também borracho que só ele. Ressecado por uma canha e sem dinheiro, apareceu uma tarde de chuva na casa do Nicão, que já o esperava. Ofereceu-lhe a garrafa e quando o visitante ia pegar, negou e condicionou: “Diga que aceita o fado”. E o coitado, entregue, respondeu. “Não queria e nem devia aceitar, seu Nico, mas aceito”. E, nesta hora, o braço do Nicão fraquejou e só deu tempo de o “mamau” segurar a garrafa. Naquela noite, depois de emborcar todo o frasco, Pereirinha deixou o rancho com os olhos em fogo, rolou na mangueira e, lentamente, seu corpo começou a se transformar, mostrando pelos e garras. Então, já virado em lobo, uivou para a lua que surgia como um boião de prata por detrás de uns ciprestes e começou a correr, correr, correr, louco, pela estrada afora.
Reprodução do Blog Campereada, de Paulo Mendes, no Correio do Povo.
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