Na última segunda (18) foi feriado nos Estados Unidos. A razão era o aniversário do nascimento de Martin Luther King Jr., um dos principais líderes do movimento pelos direitos civis e contra o sistema de segregação racial vigente nos EUA até o final dos anos 1960.
Hoje, os Estados Unidos podem até ter um presidente negro, mas adesigualdade racial combatida por King está longe de ser vencida. Qualquer estatística norte-americana indica a relativa situação desfavorável da população afrodescendente.
Ainda que, do ponto de vista legal, a igualdade esteja assegurada a todos os cidadãos, os distúrbios raciais que vira e mexe eclodem em cidades como Atlanta, Chicago e Los Angeles demonstram que existe muito trabalho a ser feito nos Estados Unidos em termos de justiça social.
Exatamente como no Brasil.
Quando eu trabalhava como diplomata na embaixada em Washington, um dos elementos do discurso oficial sobre as relações bilaterais era o fato de que éramos ambos democracias multiétnicas e de que, entre outras coisas, dividíamos a responsabilidade de resgatar o legado da escravidão.
O Brasil e os Estados Unidos foram dois dos principais destinos do tráfico negreiro. Nos EUA, a escravidão foi abolida em 1865, com a vigência de leis segregacionistas até 1967. No Brasil, foi abolida em 1888, sem a implementação de qualquer política pública para a integração sócio-econômica da população afrodescendente recém-libertada.
Não podia dar certo. E não deu.
Joaquim Nabuco dizia que não bastava abolir a escravidão, tínhamos de acabar com a obra da escravidão. No Brasil, esse trabalho continua incompleto. A mentalidade escravocrata está longe de ser extinta. Quando eu falo de legado da escravidão, é disso que estou falando.
Essa mentalidade, sobrevive, por exemplo, na decisão de clubes sociais de São Paulo, entre eles o Esporte Clube Pinheiros, de exigirem que babás se identifiquem por meio de uniforme branco. A mentalidade escravocrata continua, também, na concepção arcaica dos membros do Conselho Superior do Ministério Público estadual, que esqueceram o artigo 127 da Constituição Federal para sustentar essa decisão discriminatória. (Por curiosidade: quantos desses conselheiros seriam associados desses clubes?)
Quando eu ia para escola e reclamava do meu uniforme, me explicaram que servia para que não se notasse a diferença social entre os alunos. Aos oito anos de idade, essa uniformização me pareceu razoável. O uniforme branco das babás faz justamente o contrário: acentua as diferenças sociais. Serve, sim, para indicar deixar bem claro —em branco— ao coletivo quem serve e quem é servido.
Em geral, mas nem sempre, as pessoas inferiorizadas socialmente são negras. Na mentalidade escravocrata, isso é normal. A consulesa da França em São Paulo, que é negra mas não é pobre e tem filhos brancos, já foi admoestada em um clube social por não usar uniforme branco.
Nas Filipinas —país que, aliás, andou abastecendo o mercado paulista de empregadas domésticas clubes sociais incluem "refeições de empregada" (Yayá meals, mais baratas e de menor qualidade) no cardápio. Daqui a pouco isso chega aqui.
A questão do uniforme deveria ser discutida entre os patrões e as babás, exclusivamente. Os clubes não podem impor uniforme —ainda mais de cor determinada. Se é para identificar os não sócios, como alegam, que ofereçam um crachá de visitante ou convidado, como fazem os condomínios comerciais.
Para quem vier com papo de "tirania do politicamente correto", saiba que isso não existe. O que existe é gente que descobriu que tem direitos e quer que eles sejam respeitados.
Na próxima vez que se sentir nobreza com suas duas babás de branco no clube, lembre-se de que não há nada mais cafona que o legado da escravidão.
(Ah! Tem uma peça sobre um episódio da vida de Martin Luther King ("O Topo da Montanha" ), com Lázaro Ramos e Taís Araujo, no teatro da Faap. Vale a pena assistir.)
Texto de Alexandre Vidal Porto, na Folha de São Paulo.
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