Meu tio Carrapicho é quem contava. Eles gostavam das noites de luar, bem claras, e costumavam acordar no início da madrugada, quando o silêncio dominava por completo a antiga estância das Pedras Mouras, naquela época já transformada num amontoado de taipas abandonadas, com apenas um casarão antigo ainda de pé. A estampa deles ficava no único lugar da casa que o teto ainda não despencara e onde estavam penduradas as fotografias emolduradas nas paredes cheias de musgos. Duas ou três ainda se mantinham presas nas paredes. As outras haviam caído no chão apodrecidas pelo tempo. Todas estavam rasgadas, os rostos rotos e esmaecidos. O tio jurava que os velhos barbudos saíam das molduras e que perambulavam pela casa, pilchados e armados. Saíam faíscas das esporas. No pátio, dançavam e cantavam numa farra macabra que atravessava as madrugadas quentes de verão.
Uma vez fomos buscar uma vaca com cria lá perto e passei pelo local misterioso. A área era coberta por um matagal, cheia de hera, ervas daninhas de todo tipo, caraguatás, bambuzais, carquejas, maria-mole, os antigos alicerces estavam escondidos entre as moitas. Tudo triste e abandonado, com cheiro de passado. Parei para olhar por muito pouco tempo, porque um vento balançou as folhagens, passou por mim, cravou-me na cara um espinho de frio e me deixou um arrepio pela espinha. Tratei de me retirar o mais rápido que podia daquele lugar assombrado, sítio onde os fantasmas perambulavam e ainda se divertiam nas noites mortas. Até o Cacique, um cusquinho baio que tinha à época, olhava para a velha tapera e dava uns grunhidos estranhos, com o olhar assustado.
O Carrapicho conhecera, ainda guri, um dos irmãos proprietários da fazenda. Era um ancião de barba comprida, com um lenço vermelho no pescoço, que nunca tirava. Diziam que era para esconder um profundo corte de faca. Numa revolução, havia sido preso pelo inimigo e quando ia ser executado, chegou a tropa maragata para resgatar os parceiros prisioneiros. Este coronel Salustiano deu um pinote e, mesmo maneado, conseguiu escapar do carrasco. Ficou apenas com um talho grande no pescoço. O irmão dele, Aparício, mais velho, lutara na guerra do Paraguai e falavam que era mau por natureza. “Inimigo bom é inimigo morto”, gritava sempre, enquanto brandia a faca prateada, afiada e depois a enterrava no pescoço do vivente atado à sua frente. Depois chutava-lhe o peito para que morresse estrebuchando. O matador tomava uns goles de canha e depois cuspia o resto sobre o corpo do morto.
Mortos, aqueles espíritos indômitos e peleadores queriam dar vida de novo à estância da família, fazer alarido, como sempre fizeram. Lá no bolicho, alguns borrachos questionavam, diziam que essas visões eram invenção do povo ignorante. Não sei, nunca vi os barbudos farristas, mas o tio Carrapicho garantia que os avistara por várias vezes. Pelo sim, pelo não, nunca mais passei lá e essa história acabou esquecida.
Reprodução do Blog Campereadas, de Paulo Mendes, no Correio do Povo.
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