domingo, 31 de janeiro de 2016

Viaje com sua mãe


Sentadas à beira do Canal de Veneza, cada uma com sua Birra Moretti, ficamos ali, descansando as pernas das longas caminhadas, admirando as gôndolas –e os gondoleiros, vendo o sol do verão italiano brilhar naquelas águas romanticamente poluídas.
- Mãe, você não disse que estava sem grana para viajar?
- Estava. Vendi meu carro.
Enquanto eu quase engasgava com a cerveja, ela me explicou, sem tirar os olhos das gôndolas e dos gondoleiros. "Vendi o Vectra, comprei um Gol e, com a diferença, vim."
Eu fazia um mochilão na Europa, que duraria no total seis meses e numa dessas conversas, minha mãe, que nunca havia estado na Europa, falou da vontade de me encontrar, mas estava sem grana para uma viagem dessas.
Uma semana depois da conversa, ela disse que iria e ficaria comigo durante três semanas. "Venha, mas será do meu jeito." Nem me lembrei da questão "dinheiro".
"Meu jeito" significava uma viagem bem econômica. Dei um tempo aos albergues, que cederam lugar a hotéis simples. Um deles, coitada, nem banheiro no quarto tinha. Não foi uma economia muito inteligente, mas temos histórias para contar.
Desde que acordávamos até a hora de dormir, era eu quem decidia os caminhos, os passeios, os melhores horários, se era seguro, se valia a pena, quanto tempo ficar. Quase toda a comunicação era feita por mim, porque o inglês dela acabava no "nice to meet you'.
Preciso dizer o quanto é cansativo uma pessoa depender de você o tempo todo? Preciso dizer que perdi a paciência algumas vezes e deu briga? Preciso dizer que me senti uma idiota quando percebi que estava cansada e sem paciência para cuidar da minha mãe?
Talvez, nessa viagem, eu tenha entendido pela primeira vez o quanto ela deve ter se sentido exausta por trabalhar e cuidar de três filhos, o quanto ela precisou de paciência quando talvez não tivesse nenhuma. Eu nem era mais uma adolescente, mas agia como uma, sendo horrível com a pessoa que deu duro pra me criar à base de leite Ninho, escola particular, aulas de balé, de violão e férias na praia.
Ela também me fez usar botinhas ortopédicas e aparelho nos dentes e eu a odiei por isso, mas hoje agradeço. A gente leva tempo para entender que mães quase sempre têm razão. A minha ainda tem crédito porque nunca foi adepta do "eu avisei".
Estava sendo horrível com a pessoa que teve coragem de vender um carro para estar comigo. O que diz muito sobre ela, mas sobretudo me dava respostas sobre eu mesma e a pessoa que eu me tornava.
Foi nessa viagem que descobri muitas coisas sobre minha mãe e que a enxerguei menos como minha progenitora e mais como mulher, como uma grande amiga e uma ótima companheira de viagem. Adorei ser mochileira, foi uma experiência maravilhosa, me disse ainda ontem.
Lembra do garçom em Roma, que nos mandava aperitivos e sobremesas de graça apenas porque acertei que o rei de Roma era Falcão? Lembro, mami. E quando fiquei sentada em um café em Veneza, com nossas malas, enquanto você procurava uma hotel? Um dos cafés mais caros da vida. Não esqueço do anão nórdico de cuecas no corredor do hotel. E as belgas de topless na praia, que maravilha? Você deveria ter feito também. E você chorando de soluçar quando demos de cara com as ruínas do Fórum Romano? E quando aquele italiano lhe tirou pra dançar na Piazza San Marco? Achei que seu pai me mataria, ainda bem que você me obrigou.
Ainda bem, mãe. Ainda bem que você vendeu seu carro. Ainda bem que você foi. Ainda bem que pude cuidar de você. Ainda bem que vivemos todos aqueles momentos. Ainda bem, mãe.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

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