Ta-Nehisi Coates emociona em carta ao filho sobre racismo
ALEX CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
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"Entre o Mundo e Eu", carta do jornalista norte-americano Ta-Nehisi Coates (pronuncia-se "tanarrássi") para seu filho de 15 anos, é um livro sobre o corpo negro.
Quanto mais subalterno é um grupo, mais seus membros serão vistos como "apenas corpos": sexualizados, intercambiáveis, dispensáveis. (Pensem no corpo de uma mulher negra em propaganda de cerveja.)
Inversamente, para o subalterno, uma das poucas proteções é dominar os códigos culturais hegemônicos e, assim, transcender a fragilidade do próprio corpo. Em Cuba, o poeta Juan Francisco Manzano nasceu escravizado, aprendeu a ler por conta própria e compôs a única autobiografia que se conhece de um escravo latino-americano.
Nos EUA, após uma infância amedrontada, de perder amigos e parentes para a violência, de não conseguir terminar a universidade, de ser free-lancer enquanto a mulher o sustentava, Coates tornou-se colunista da revista "The Atlantic", recipiente de uma "bolsa para gênios" da Fundação MacArthur, e autor best-seller. ("Senti que estava entre os sobreviventes de algum grande desastre natural", escreveu.)
Coates e Manzano têm trajetórias parecidas: dois negros que dominaram a palavra para assim transcenderem a precariedade de suas origens.
O catalisador para "Entre eu e o Mundo" foi o assassinato de um conhecido de Coates pela polícia. O rapaz esquiava todo ano, dirigia um carro caro, não tinha ficha na polícia, "santo padroeiro da lógica que diz que negros devem ser 'duas vezes melhores' para alcançar o mesmo que os brancos". Nada disso o salvou de ser morto por um policial que alegou tê-lo confundido com um bandido e nunca passou um dia na cadeia. Se nem ele estava isento, que negro poderia estar?
Mais tarde, Coates entrevista a mãe do jovem. Ela lembra de Solomon Northrup, o negro livre que foi ilegalmente vendido como escravo e mantido em cativeiro (o filme "12 Anos de Escravidão" se inspira nele). "Ele tinha meios, família. Estava vivendo como um ser humano. E um ato racista o trouxe de volta. A mesma coisa aconteceu comigo. Passei anos desenvolvendo uma carreira, adquirindo bens. E um só ato racista. Bastou isso."
Só então Coates compreende o modo obsessivo como os negros amam seus filhos: por saberem que podem ser mortos a qualquer momento, como se suas vidas tivessem sido apagadas por um desastre natural. E escreve ao filho: "[O]correu-me então que você não escaparia, que havia homens horríveis que tinham feito planos para você, e que eu não conseguiria detê-los".
A melhor segurança para um menino negro em uma sociedade racista é ter noção de quão precária é a condição de portador de um corpo negro.
Daí seu livro para o filho -cujas lições, infelizmente, também valem para o Brasil.
Apesar de aclamado, "Entre o Mundo e Eu" despertou polêmica, por ser radicalmente materialista numa comunidade negra onde a experiência religiosa sempre foi fator de consolo e união.
Na visão de Coates, não há espaço para Deus nem para boas intenções.
E, assim como meninos brancos nunca entenderão o que é ter um corpo negro, seu filho precisa saber que jamais entenderá o que significa ter um corpo de mulher.
Enquanto movimentos sociais brasileiros parecem isolados em guetos (quando algumas feministas radicais são abertamente transfóbicas, e muitos homens de esquerda, escancaradamente machistas), é um alento ver Coates desconstruindo não apenas a narrativa racista, mas também as demais narrativas outrofóbicas que ele mesmo carrega dentro de si:
"Sou negro, fui saqueado e perdi meu corpo. Mas talvez também possa saquear, pegar o corpo de outro humano para me afirmar. O ódio confere uma identidade".
Ele enfatiza que, para militantes de causas subalternas, a união talvez seja o mais importante: "A nenhum de nós foi prometido que estaremos de pé ao final da luta. Mas quer se lute, quer se corra, devemos fazer isso juntos. O que nunca devemos fazer é entregar voluntariamente nossos corpos ou os de nossos amigos".
Ele enfatiza que, para militantes de causas subalternas, a união talvez seja o mais importante: "A nenhum de nós foi prometido que estaremos de pé ao final da luta. Mas quer se lute, quer se corra, devemos fazer isso juntos. O que nunca devemos fazer é entregar voluntariamente nossos corpos ou os de nossos amigos".
GROUND ZERO
Coates diz que o Downtown de Manhattan, a ponta onde ficava o World Trade Center, sempre tinha sido o "Ground Zero" dos negros. Ali eram leiloados e enterrados os cativos do Novo Mundo: "Bin Laden não foi o primeiro a levar o terror para essa parte da cidade".
Durante as obras para a Olimpíada de 2016, a prefeitura do Rio desencavou o Cais do Valongo, talvez o principal ponto de entrada de escravos nas Américas. No total, mais de cinco milhões de escravos entraram no Brasil. Quando discutimos racismo, muitas brasileiros se apegam a um único consolo: "Pelo menos não somos racistas como os EUA!". Um falso alívio.
ALEX CASTRO, 41, é autor de "Outrofobia" (Publisher Brasil) "A Autobiografia do Poeta-Escravo Juan Francisco Manzano" (Hedra).
Reprodução da Folha de São Paulo.
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