domingo, 3 de janeiro de 2016

Espírito natalino

As festas natalinas foram oficialmente suspensas em Cuba por mais de duas décadas, a partir do ano 1969 ou 1970. A razão apresentada pelo governo para justificar a decisão era a necessidade de aproveitar essas propícias jornadas invernais do trópico para redobrar esforços nas campanhas de corte de cana, uma atividade econômica vital para o desenvolvimento do país. O propósito menos divulgado, mas presente na decisão, era a superação de um costume considerado atrasado em um país onde, segundo os preceitos marxistas adotados, a religião deveria ser superada em favor do progresso social e espiritual de indivíduos empenhados na construção de uma nova sociedade.
Contudo, como consoladora alternativa festiva, o último dia do ano velho e o primeiro do ano novo funcionavam como tábua de salvação, graças à efeméride da vitória revolucionária, que tinha se concretizado em 1º de janeiro de 1959. Essa data, que era festejada, era justificada com conotações políticas, e não religiosas ou de costumes antigos imaculados havia séculos. Os spots de propaganda desejavam, desde então, um "Feliz aniversário do triunfo da Revolução", em lugar do tradicional "Feliz Natal e Próspero Ano Novo" que os cubanos costumavam desejar uns aos outros em suas saudações nessa época.
A partir da década de 1990 o Natal voltou, devagar e sorrateiramente, a ser festejado em Cuba. Desde então, a festa de origem religiosa e comemoração histórica conviveu em harmonia melhor, que se tornou mais efetiva quando, a pedido do papa João Paulo 2º, o governo cubano restituiu o feriado de 25 de dezembro, primeiro de modo excepcional (graças à visita do pontífice à ilha) e depois permanentemente (como gesto de boa vontade em relação ao papa e os religiosos cubanos).
E, embora muitas pessoas no país tenham restaurado os restos da solenidade natalina por tantos anos cancelada (ou praticada a portas fechadas pelos fiéis mais devotos), já se sabe que poucas coisas são mais delicadas que as tradições: alimentar e preservá-las costuma ser fácil, mas fazê-las renascer é um esforço mais complexo.
Muitas famílias em Cuba, eu diria que uma porcentagem enorme delas, festeja hoje os dias de Natal e se despedem com espírito festivo do ano que se encerra. Cada uma segundo suas possibilidades econômicas e seu grau de crença religiosa. Quase todas preparam uma ceia especial nesses dias, a maioria delas com carne de porco (na melhor tradição cubana), outras com peru (se o conseguem, pois essa ave parece ter se extinguido em Cuba) e outras com um simples frango. Muitas famílias penduram algum enfeite natalino em suas salas e portas, e há outras que chegam a montar árvores de Natal (às vezes é possível comprá-las nas lojas do país), enquanto outras tiram o pó de velhas figurinhas salvas do esquecimento para montar um presépio, com sua manjedoura, Maria, José e os Reis Magos. Hoje, além disso, as pessoas em posição econômica melhor costumam exibir sua situação com muitas luzinhas coloridas -embora isso não implique necessariamente que sejam mais crentes.
Então o chamado "espírito natalino" se estende pelas cidades e os campos de um país que, com atitude revolucionária, quis superar esse atraso de um passado também vencido em muitas outras frentes econômicas, sociais e culturais. Só que, devido à evolução social, a marginalização sofrida por tantos anos e as dificuldades econômicas, o novo ambiente natalino adquiriu conotações novas e diferentes para uma parte considerável da população cubana.
Um elemento que ganhou força é a atitude gregária, que cresceu. Mais que familiar, a celebração natalina é um evento social do qual também participam amigos e conhecidos em busca da diversão simples à base de música, bebida e comida. Quem faz as vezes de anfitrião da multidão festejante contribui com quantidade maior ou menor de insumos comestíveis e bebíveis, enquanto os convidados trazem diversas contribuições complementares. Mas o que mais se destaca como componente festivo é a música. Mas não a música para ouvir ou para dançar (é a música pela música, como sinal de que há festa e que todos no bairro precisam saber disso). Por essa razão, muito antes de começar a festa em si, a música já se faz presente e, é claro, em um volume que a torne perceptível no bairro todo e por qualquer transeunte. Por isso, se hoje me perguntam qual é o elemento que melhor caracteriza o espírito natalino cubano, eu diria que são dois: o álcool e a música trovejante da qual falei.
A música que as pessoas reproduzem em suas casas constitui hoje um verdadeiro problema nacional em Cuba. Cada vez mais pessoas no país concebem o ato de ouvir música como uma projeção de sua alegria e, por isso, a tocam em volumes muito altos. Só que nos dias de festa a agressão sonora começa desde cedo e se estende, invencível, até altas horas da madrugada, sem que ninguém se atreva a intervir, incluindo as autoridades que, supostamente, deveriam vigiar contra um fenômeno que altera a convivência. Hoje, em Cuba, somos todos obrigados a ouvir música, seja ela música da qual gostamos ou que odiamos, pois a vontade do vizinho "alegre" nos obriga a sofrer algo que se pode descrever como uma invasão sonora que, nos dias natalinos, alcança proporções bélicas. Atômicas!
Enquanto isso, o consumo de bebidas, que parece ter se convertido em um problema social e de saúde no país, alcança seu auge também nesses dias, como se embebedar-se fosse o melhor e mais percorrido caminho para a alegria ou para o céu da inconsciência.
Sei que vivemos em uma época, inclusive em um século diferente daquele que me deu minhas primeiras noções do Natal, da despedida do ano e até da comemoração do Dia de Reis (também suprimido dos calendários festivos cubanos). A mística que essa época costumava ter, inclusive para os não crentes, foi devorada pela quebra de uma tradição e pela contaminação de atitudes sociais que são expressões de uma alteração e da perda de valores relacionados à precariedade econômica, à convivência e ao respeito pelo direito do outro, males que assolam a ilha do Caribe. O espírito natalino mudou muito, eu diria que se desvirtuou em relação à sua origem, mas, de qualquer modo, serve como pretexto insuperável a meus compatriotas que, na realidade, não precisam de motivações divinas para praticar uma de suas atividades preferidas: a festa. E quanto mais barulhenta e cheia de gente, melhor, não é verdade?


Texto de Leonardo Padura, na Folha de São Paulo

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