segunda-feira, 3 de junho de 2013

O sol sobre o pântano


"Somos todos leprosos!", afirma o Monsenhor no livro "O Casamento", de Nelson Rodrigues, muito bem adaptado e dirigido por Johana Albuquerque, em cartaz no teatro Tuca.
O que quer dizer esta afirmação exagerada "Somos todos leprosos"? No romance adaptado existe uma personagem leprosa, e ela se torna, na fala do Monsenhor, o paradigma da humanidade em nossa humanidade. Todos necessitamos de misericórdia porque estamos "em pedaços", e estes pedaços "desfilam" pelo palco, gemendo de prazer e dor.
Nelson Rodrigues é um desses clássicos que todo mundo fala mas pouca gente conhece de fato. Como ele é "cult", dizer que ele é o "máximo" é algo esperado em jantares inteligentes, afora, é claro, os ignorantes que o acusam de "machista" ou, na versão mais moderninha da mesma bobagem, "sexista".
"Um Anjo Pornográfico", título da excelente biografia escrita por Ruy Castro, é uma forma precisa de descrevê-lo. Porque, mesmo sendo pornográfico, ele ultrapassa o discurso sobre sexo para falar do "miserável tédio da carne" que não fala especificamente da carne, mas sim da carne como pele da alma e não do corpo. Seus textos parecem confissões de agonia da alma diante do pecado, na mais velha tradição cristã do começo do cristianismo.
Nelson não é um mero autor de sacanagem (Nelson não é um Sade pernambucano), mas sim um autor espiritual, no sentido mais forte da palavra, talvez, o melhor teólogo que o Brasil já produziu, já que nos últimos anos a teologia brasileira é mais autoajuda do que qualquer outra coisa.
Se formos situá-lo na tradição ocidental, eu o colocaria no encontro entre três gigantes: Freud (sexo como centro dilacerante da alma), Dostoiévski (a alma só sobrevive numa atmosfera de misericórdia porque seu elemento natural é o perdão) e Santo Agostinho (a consciência de que todo drama do corpo é em si um drama da alma). A obra rodriguiana faz de Freud um teólogo.
A expressão "Sol sobre o pântano", que descreve muito bem o efeito causado pela montagem de Johana Albuquerque, é um modo presente na fortuna crítica para nomear a obra dramatúrgica de Nelson: sua obra ilumina nossa miséria. A expressão foi usada por Léo Gilson Ribeiro, nos anos 1960, num texto no qual ele diz ser nosso maior dramaturgo um expressionista brasileiro.
Nelson era um obcecado por sexo, adultério, sífilis, crime passional, homossexualismo (pederastia), cunhadas gostosas, todas umas Lolitas cariocas. "Em cada esquina do subúrbio carioca existe uma Anna Karenina e uma Emma Bovary", dizia Nelson. No Brasil, a tragédia anda de lotação.
No mesmo artigo, Léo Gilson Ribeiro cita a famosa passagem na qual Nelson, comentando sua peça "Bonitinha, mas Ordinária", afirma que "a nossa opção é entre a angústia e a gangrena. Ou o sujeito se angustia ou apodrece. E se me perguntarem o que eu quero dizer com a minha peça, eu responderia: que só os neuróticos verão a Deus".
Nelson ri dos idiotas que ainda afirmam que no sexo há redenção e que a revolução sexual nos salvará do tédio. Não, o sexo como sentido da vida é tédio puro. Só idealiza o sexo quem não faz muito sexo. No "Casamento" não é outro o sentido do suicídio de Antônio Carlos, o comedor de todas a mulheres do mundo.
As risadas artificiais desvelam o vazio que carrega os personagens arrastados por protocolos: "Não se adia um casamento na véspera só porque a noiva está menstruada!", de novo, decreta o Monsenhor, o oráculo do romance.
No sexo da mulher, o sangue menstrual que escorre pelas suas pernas define sua feminilidade. A mulher é mulher porque sangra e sangra porque pode ser fecundada no coito e, quando não mais sangra, se sente menos mulher.
Este mesmo oráculo que diz que o sexo é uma mijada (afinal, o órgão sexual é o mesmo que mija, tanto no homem como na mulher e na mulher também sangra), enuncia a diferença final entre nós e os animais: "a culpa faz de nós humanos". A dor da alma é que nos mantém de pé.
Se na teologia clássica é dito que só os pecadores verão a Deus, na teologia rodriguiana só os neuróticos verão a Deus.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

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