quinta-feira, 23 de junho de 2016

Os mitos da Previdência

O governo interino de Michel Temer anunciou para as próximas semanas o envio de um projeto de Reforma da Previdência ao Congresso Nacional. A proposta capitaneada por Henrique Meirelles deve incluir idade mínima para aposentadoria e aplicação das novas regras já aos trabalhadores na ativa.
A missão, diga-se, foi preparada pela presidenta Dilma, que defendeu a reforma na abertura do ano legislativo como parte das fracassadas tentativas de angariar apoio no mercado. Agora, o interino e seu ministro-banqueiro querem impô-la guela abaixo dos trabalhadores.
Paralelamente intensifica-se a mistificação da opinião pública, forjando um consenso de que o ataque às aposentadorias é uma preocupação com o futuro e que, sem ele, o país caminharia à bancarrota
O primeiro mito é de que os brasileiros se aposentam mais cedo que a maior parte dos trabalhadores do mundo. E que, com o aumento da expectativa de vida por aqui, nos tornamos um caso único e insustentável.
Vamos aos números. Nas regras atuais, para obtenção de aposentadoria integral, os homens precisam da combinação de 60 anos de idade com 35 de contribuição, e as mulheres, 55 de idade com 30 de contribuição. É o chamado fator 85/95, aprovado em 2015. A expectativa de vida média no país é hoje de 75 anos.
O economista da Unicamp Eduardo Fagnani fez o comparativo: "No caso da aposentadoria por tempo de contribuição, o patamar 35/30 anos é superior ao estabelecido na Suécia (30 anos) e se aproxima do nível vigente nos EUA (35 anos), Portugal (36), Alemanha (35 a 40) e França (37,5), por exemplo. Como se sabe, esses países têm renda per capita bastante superior à brasileira e a expectativa de vida ao nascer é superior a 80 anos".
O Brasil, diz ele, tornou-se um ponto fora da curva pela razão inversa. A aprovação do fator previdenciário em 1998 estabeleceu padrões de aposentadoria mais duros que a média internacional, em prejuízo dos trabalhadores.
O segundo mito, repetido à exaustão, é o do rombo da Previdência Social. Meirelles anunciou recentemente que a Previdência terá um déficit de R$136 bilhões neste ano, seguindo a trajetória dos anos anteriores. As receitas da Previdência, portanto, seriam sistematicamente menores que o gasto com aposentadorias. Daí a necessidade da reforma.
Num extenso trabalho, a economista da UFRJ Denise Gentil mostrou que esse cálculo é falacioso. Acima de tudo, desrespeita a normatização do sistema de Seguridade Social pela Constituição.
A contabilização do déficit considera como receita da Previdência apenas os ingressos do INSS que incidem sobre a folha de pagamento. Desconsidera outras fontes estabelecidas expressamente pelo artigo 195 da Constituição, tais como a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e as receitas de concursos de prognóstico (resultado de sorteios, como loterias e apostas).
Essas fontes estão atreladas constitucionalmente ao sistema de Seguridade Social. O dito rombo da Previdência é resultado do direcionamento indevido delas a outras finalidades, notadamente o pagamento da dívida pública.
A professora Denise estudou um período de 15 anos, esmiuçando como a manobra que mistura o orçamento da Seguridade Social com o orçamento fiscal produz a ideia do rombo.
E não se trata apenas de uma sutileza contábil. O que está em jogo é a disputa do fundo público entre o necessário pagamento das aposentadorias ao trabalhador brasileiro e o financiamento de agiotas internacionais, com os juros escorchantes da dívida.
Meirelles e sua turma têm um lado bem definido nesta disputa. Com os argumentos falaciosos do "rombo" e das "distorções", querem na verdade retirar direitos adquiridos, penalizando os setores mais vulneráveis. Aliás, não os vemos questionar o pagamento de pensões vitalícias a familiares de militares nem o acúmulo de benefícios pelos ministros do Superior Tribunal Militar.
Colocando os mitos de lado, a marca desta reforma da Previdência é atacar os direitos dos trabalhadores, mantendo intocados os privilégios.


Texto de Guilherme Boulos, na Folha de São Paulo

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