sábado, 4 de junho de 2016

Faça o autoexame

Hoje, no banho, você vai se tocar. Existe um câncer perigosíssimo rondando esse planeta, desde que mundo é mundo e, infelizmente, ele ataca muitas mulheres. Hoje, de forma rápida e precisa, de preferência nua e embaixo da água quente, você pode detectar esse mal e salvar a sua vida. Descobrir no começo é sempre mais fácil.
O teste é muito simples. Enquanto você esfrega a sua cabeça, responda: é um pouco irritante quando a conta chega e ele aceita de bom grado o seu cartão de crédito? Ao descer pro pescoço, seja sincera consigo mesma: é um tanto perturbador quando ele não sabe o que fazer da vida e chora? Uma vez nos seios, não hesite em descobrir a verdade: ele não querer transar porque está angustiado lhe dá vontade de rir? O assunto é machismo. Sim, precisamos combatê-lo. Mas preste atenção nas coisas que você fala, pensa e sente. Será que essa doença tão ancestral quanto destruidora não mora também dentro de você?
Você não está louca "porque é mulher". Você está louca porque nasceu e essa é a única honestidade possível frente a existência. Estamos todos ensandecidos! Dá só uma olhadinha no seu colega, esse mesmo que anda pelos corredores se fazendo de inabalável e professor supremo do equilíbrio espiritual. Chega mais pertinho dele e faz alguma pergunta que não esteja no roteiro ensaiado de macho alfa pronto pra vida. Você vai ficar chocadíssima com o show de esquizofrenia. Então, por favor, se tire desse lugar em que todo machinho adora te colocar. Não a cozinha, o corredor da psiquiatria.
Ensaboe com vontade a barriga e repita comigo: você pode ter um dragão fumando crack tatuado na virilha, você pode ter aberto espacate usando saia plissada PP no Natal da firma, você pode chegar em uma festa e não conseguir mais contar nos dedos das mãos e dos pés a quantidade de caras com quem já transou (só esse ano). Isso não significa que você é uma puta. Aliás, não tem problema nenhum ser puta. Existe uma diferença entre ser puta e ser "uma puta", como os caras gostam de falar.
Uma vez eu disse NÃO para um rapaz que me forçava a tirar a roupa e ele segurou meu braço, machucando: "Cê veio até aqui pra que, porra?". Entrei chorando e tremendo no meu carro, elaborando uma lista de mil defeitos para mim. Gostaria de poder voltar no tempo e responder: eu vim pra socar a sua cara, eu vim pra dar um peteleco na cabeça xucra do seu pequeno pênis. Agora lave com cuidado suas coxas e entenda uma coisa: você não é obrigada a querer nada. Você não é obrigada a fazer nada. E se você estiver nua e cravejada em lantejoulas vermelhas, de quatro, em um chão cheio de gel, e disser NÃO, porque NÃO for o que te apetecer dizer, o moço, iludido e entumecido, que aceite a dura realidade sem fazer uso de nenhuma força.
Muitas mulheres nas redes sociais, nas reuniões, nos almoços em família, estão dizendo que "essa menina estuprada não era nenhuma santa". E onde encontramos santas, a não ser em imagens de gesso ou fantasias ignorantes de "moça pra casar"? Hoje no banho, enquanto você lavar a sua bunda, eis uma boa hora para lembrar que, uma vez que movidos a impulsos humanos, somos todos imundos de desejos e dejetos. Não existem santas, mas existem, triste realidade, demônios. Trinta de uma única vez. Lutemos contra eles, mas também contra o ressoar dessas vozes machistas enjauladas em nossas dobras, poluindo nossas crenças. Olha lá aquele monte de culpa indo pelo ralo.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário