A barulheira contra a deliberação do eleitorado britânico em sair da União Europeia expressa o mal-estar crescente com a democracia. Um Aécio Neves não faria má figura no Reino Unido. Também lá se esgoela contra o resultado das urnas e se berra que o referendo deve ser refeito.
Vale qualquer gambiarra, menos a soberania popular. Para os bens pensantes, ela é um robe de chambre puído que deveria ser recolhido a um brechó –assim como os direitos trabalhistas, o amparo a aposentados e a chance de ter emprego ao fim da faculdade. Nada disso cabe na globalização comandada pela grande finança.
Foi contra ela que os súditos de Elizabeth 2ª estrilaram. Os mapas eleitorais mostram que o repúdio à União Europeia venceu nos distritos com maior número de remediados; ou de idosos; ou de desempregados (que competem com imigrantes por vagas); ou de vulneráveis (dependentes do Sistema Nacional de Saúde).
O repúdio à política da austeridade, cuja implantação no velho continente cabe à União Europeia, não se limita ao Reino Unido. Onde quer que haja eleições, a repulsa ao desmantelamento de conquistas sociais aparece.
Foi assim há pouco, na Itália e na Espanha, onde soçobraram os partidos que pregaram a desregulamentação do trabalho e o enfraquecimento do Estado –exceto da polícia e das forças armadas, que dispõem de verbas cada vez mais formidáveis.
O mal-estar com a democracia brota da tensão entre os fundamentos econômicos do continente e a sua organização política. Desde 2008, ele vem crescendo. Porque grandes bancos ganharam bilhões de euros para sair da crise e nem por isso ela arrefeceu. Para completar, guerras no Oriente Médio levaram milhares de miseráveis a buscar abrigo na Europa.
A tensão não surge só na hora de votar. Na França, desde março se sucedem manifestações-monstro contra a lei El Khomri. Houve greves em metrôs e trens, na educação, na aeronáutica e até em centrais nucleares. A nova legislação permite que acordos entre trabalhadores e empresas se sobreponham às convenções coletivas.
A lei, que segue diretivas da União Europeia, destrói um poderoso instrumento de barganha dos trabalhadores –as campanhas salariais unificadas, de um mesmo ramo da economia. Nas reformas de base de 64, aliás, o sindicalismo brasileiro era mais radical que o francês: reivindicava a data-base única, o 1º de maio, para todas as categorias profissionais.
Como estandarte dos tempos de empoderamento, a lei leva o nome da ministra do Trabalho, a triplamente oprimida Myriam El Khomri: mulher, marroquina e muçulmana. Só um partido social-democrata, o PS, imaginaria um nome tão politicamente correto para uma lei tão antitrabalhadores. Nem Sarkozy pensou nisso.
A vaga contra a Europa da elite abalou partidos novos e antigos, à direita e à esquerda. Na Itália, o Cinco Estrelas, populista, vem de eleger prefeitas em Roma e Turim. Na Grécia, o Syriza, de extrema-esquerda, passou rapidinho da teoria antiausteridade à prática do arrocho. Virou governo e sua militância definha.
Na Espanha, um movimento de rua, o Podemos, se inspirou na Venezuela de Chávez, quis se mostrar responsável como o PT de Lula –e foi à breca no domingo. Na França, a Frente Nacional, protofascista, cresce sobre a ruína do PS. Na Escócia, o separatismo galvanizou a juventude, mas açulou a direita racista.
O brechó brasileiro é parte desse mundo. Também aqui há tensão entre democracia e regressão econômica. Entre as necessidades do capital e a aspiração a uma vida menos bruta. Entre os políticos que traíram seus eleitores e a busca de quem os substitua.
Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo.
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