"A Ditadura Acabada" é o fecho augusto do opus magnum de Elio Gaspari sobre o mandarinato militar. No todo, são cinco volumes que somam 3.500 páginas. A bibliografia ultrapassa 700 livros e 200 CDs, com 220 horas de diálogos de Ernesto Geisel com assessores. Cerca de 7.000 notas de pé de rodapé amparam cada informação factual. São mais de 200 os entrevistados.
A abundância dos números é excedida pelos seus predicados: arquivos de figuras-chave da ditadura são contrapostos ao testemunho dos seus opositores e da batelada de neutros que se beneficiou, ou foi vítima, da força militar. Forma-se assim o magma no qual se movem Planalto e Casa Branca; sacristias e sindicatos; cárceres e casernas; células clandestinas e luxuosos gabinetes; a tigrada da direita e o terror da esquerda.
A riqueza do material é fruto da energia plutônica do autor, que há 33 anos rala de madrugada, em fins de semana e férias para escrever os livros. A esse empenho concentrado se somam duas décadas prévias de lida com a ditadura, seja como resistente, réu ou repórter.
Militante do PCB antes de 1964, Gaspari foi preso dois meses na Ilha das Flores (na mesma cela de Darcy Ribeiro). Jornalista, veio a cativar chefes do regime, que lhe franquearam documentos secretos. A vivência particular, a memória de elefante e o gosto pela tecnologia digital lhe permitiram cruzar milhares de dados.
A abundância dificulta a apreciação sumária do trabalho. Os perfis nuançados de centenas de pessoas, a percepção da situação internacional e do seu impacto na cena brasileira, a dialética entre a força do real e os desígnios subjetivos –a complexidade desafia juízos taxativos.
Ainda assim, três afirmações podem ser feitas já no calor da publicação do derradeiro volume. Não há paralelo na historiografia brasileira de uma obra com tal envergadura. É o relato mais abrangente e profundo da ditadura. A série tem a vocação de um clássico.
Fique-se com a definição de Ezra Pound para "clássico", a de uma obra com "juventude eterna e irreprimível". Ela não é a verdade revelada, e sim um ser vivo que é preciso frequentar para entender o passado e o presente. Se somos o que fomos, os que hoje clamam por uma ditadura, e também os que buscam evitá-la, deveriam ler os cinco livros.
Complexidade e abundância não querem dizer barafunda. Uma tese orienta a série: explicar por que dois generais, Geisel e Golbery do Couto e Silva, estiveram à frente do golpe, batalharam para erguer a ditadura e, quando ela estava pronta, desmontaram-na.
Pela equação, exposta no início do primeiro livro, os dois teriam imposto a sua vontade ao país e à política nacional. Terminado o quinto volume, porém, a antítese também se torna válida: o sacerdote e o feiticeiro foram criaturas de forças sociais e históricas.
Fica evidente, igualmente, o papel preponderante de Heitor Ferreira, um capitão de 27 anos quando do golpe. De cultura mais sólida que os seus mentores, ele traduziu Orwell, sabe Churchill de trás para frente, falava sobre música americana com Ivan Lessa de igual para igual.
Foi um conselheiro de uma discrição que quase o tornou invisível. A dupla Geisel-Golbery só pode existir, contudo, porque na verdade foi uma trinca. Mas como a história é incontrolável, os três acharam que João Figueiredo seria um bom presidente. Algo semelhante se deu com Lula e Dilma.
Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo.
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