quarta-feira, 22 de junho de 2016

Fotomania

Não é só o limite para o uso da internet. O meu celular dá sinais de exaustão todos os dias. Pede-me para atualizar não sei que aplicativo; quando aceito a intimação, ele mesmo diz que não há mais espaço para nada, que o download é impossível.
Meus programas devem estar mais ou menos estacionados na campanha eleitoral de 2014; até no celular resisto às novas realidades do país. Ou melhor, tento dar um jeito. O aparelho indica os arquivos e pastas que estão pesando muito, que é preciso apagar.
Não consegui resolver muita coisa, mas ganhei uma nova mania, que se estende ao laptop também: a de apagar antigas fotografias.
Faço, de vez em quando, grandes expedições para enviar o que há de mais importante para um serviço de revelação digital. Mas uma grande quantidade de fotos acaba indo para a lixeira mesmo.
É que, graças ao celular, nunca ficou tão fácil tirar fotografias a todo pretexto. Ficam guardadas em algum chip, e nunca mais nos lembraremos delas. É a falsa memória, empanturrando um cérebro terceirizado.
Fotos de paisagens, por exemplo. A menos que sejam lindíssimas, terminam significando quase nada. Num país ventoso, cinzento e gelado, aquela encosta de arbustos verdes me pareceu notável. O ônibus da excursão estacionara numa curva do caminho.
"Aqui o clã dos Mc Rery foi exterminado pelo exército dos Mc Sparse", contava o guia; o que fazer, senão tiritar e tirar uma foto?
Atenção, aquele ponto preto, a cem quilômetros do último pico da montanha, é um condor! Aponto o celular. A meus pés, entre pedras brancas e areia cinza, quase invisível, esconde-se um rápido lagarto. Incrível! Uma foto só não basta –o bicho é ágil, talvez a imagem esteja borrada, tento outra, e esta aqui, de perfil, será a melhor das 11.
Os alemães têm uma palavra boa para designar atrações turísticas. Chamam-nas de "Merkwürdigkeiten". Dá mais ou menos para adivinhar que "merk" tem a ver com "reparar", "to remark", "observar", "remarquer", "atentar para". O "würdig" significa algo como "digno de", "potencialmente". O "keit" do final serve para substantivar o adjetivo.
Resumindo, a palavra indica "coisas que potencialmente serão dignas de que você repare nelas".
O ato de reparar, todavia, é passivo demais. No mínimo, exige que o compartilhemos com a pessoa ao lado. Azar: ela também está ouvindo as explicações do guia sobre aquela raça de vacas, presente apenas na Escócia, na Patagônia ou no Cariri. Assentimos com a cabeça.
Um mudo ponto de exclamação (!) pode homenagear esta ou outra magra queda d'água, aquele mísero resíduo arqueológico, a grande pedra no meio do caminho.
Que mais fazer, a não ser tirar uma foto com o celular, e "compartilhá-la" no Facebook, já lotado de amigos que nunca conheci?
A imagem sem valor será encaminhada para pessoas igualmente destituídas de importância para mim.
Por que isso tudo? Talvez algumas coisas tenham se tornado fáceis demais, baratas demais. Quando as fotos eram em película, pensava-se melhor antes de tirá-las e pagar a revelação.
Não é que a coisa sem valor tenha preço baixo. Por terem preço baixo, ou nulo, nascem coisas sem valor nenhum.
Mas talvez a fotomania tenha, apesar de tudo, um sentido mais profundo. O "notável" ("merkwürdig") lagarto atrás do cacto também "compartilhava" (êta palavrinha chata) comigo um mesmo e diminuto espaço do mundo. Um segundo depois, e terá fugido de vista. Preciso fotografá-lo antes que desapareça. Estou tentando, com meu celular, segurar o tempo. Quero que o instante fique; não quero que, meramente visto, o lagarto morra da minha memória, e eu com ele.
Registro, na verdade, o fato de que aquele segundo foi um pouquinho mais especial do que qualquer outro. A viagem já era uma parada no tempo. O ônibus de turismo, que estacionou, impõe interrupção nova e oficial ao transcurso indiferente do dia.
O despenhadeiro em que se deu aquela vaga batalha do século 11 prossegue em sua longa existência geológica. Nada acontece; o choque das espadas e o sangue dos soldados nada mais foi que uma fagulha no tempo. Eu me transformo apenas num celular que pisca.
Duas luzes mínimas, a de um flash, a de uma fogueira, se respondem no intervalo de mil anos. Depois apago os arquivos do celular.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário