Em 1998, o filme "Nova York Sitiada" antecipou parte do que aconteceria com o mundo a partir de 2001: 1) novo e descentralizado tipo de jihadismo, treinado pela CIA em sua origem, causa grande tragédia numa metrópole americana; 2) em pânico justificado, cidadãos exigem reação do governo; 3) opta-se pelo caminho militar/policialesco, que estimula a intolerância étnica/religiosa e avança sobre direitos civis.
Tanta acuidade histórica, no entanto, não gerou uma obra esteticamente relevante. Talvez porque as boas ideias do roteiro, escrito pelo ganhador do prêmio Pulitzer Lawrence Wright, precisassem ser traduzidas pelo esquematismo hollywoodiano de Bruce Willis e companhia. Uma coisa é o que se diz, outra é como se diz. Embora as duas dimensões se misturem em algum nível na arte, é na segunda que está a possibilidade de transcender o que já se sabe assistindo ao noticiário ou lendo os especialistas.
De certo modo, foi esse o desafio que Michel Houellebecq enfrentou em seu livro "Submissão" (Alfaguara, R$ 39,90, 256 págs.). Como "Nova York Sitiada", o romance tenta antecipar o que seria um futuro próximo para a questão islâmica. Só que, em vez da América, o palco é a Europa. E, em vez de bombas e violência ruidosa, a trama fala de uma guerra sutil de valores que culmina com a eleição de um presidente francês muçulmano em 2022.
Como exercício literal de futurologia, o livro força um pouco a barra. Estima-se que o Islã represente entre 4% e 10% da população da França. Dado o baixíssimo grau de integração dessa comunidade no país, e mesmo com projeções demográficas favoráveis a ela nas próximas décadas, imaginar um resultado eleitoral do gênero daqui a sete anos –considerando o atentado ao "Charlie Hebdo", ocorrido na semana do lançamento do romance – soa como busca previsível por polêmica.
Houellebecq, no entanto, está longe de ser um mero provocador. Como sempre em sua obra, temas já mastigados pela histeria das manchetes servem como base para voos mais ambiciosos. "Submissão" não fala propriamente do futuro. Talvez não fale nem de Islã, ao menos de modo específico e redutor. Seu centro é o mesmo de livros como "Extensão do Domínio da Luta" ou "O Mapa e o Território": os impasses no modo como se vive hoje no Ocidente.
Assim, trechos sobre uma Sorbonne regida por preceitos religiosos, ou sobre a volta do patriarcado absoluto, ou sobre o que pode haver de comum entre toda sorte de fantasias totalitárias, à direita ou à esquerda, laicas ou não, expõem a fragilidade de nossas ilusões humanistas diante da atual crise representativa –e da desigualdade, e do vazio deixado por trabalho bovino e consumismo vulgar.
Sob esse aspecto, o livro acaba tendo a mesma pertinência de "Nova York Sitiada". A discussão por trás do enredo é necessária. Idem o exercício de suas previsões, independentemente do acerto delas. A diferença é que, ao contrário da visão edulcorada de Hollywood, que dilui o tema das liberdades num discurso de boas intenções, Houellebecq o explora até os limites do niilismo.
Pode não parecer algo agradável de ler, mas há alguma chance de se encontrar integridade artística aí. É fácil condenar os males de uma variante extrema de fascismo para quem já está convencido a respeito. Difícil é mostrar como tais engrenagens podem ser mais discretas e eficientes, e que corremos o risco de sucumbir a elas por covardia, carreirismo ou qualquer motivo abaixo do radar da grande teoria política.
Em "Submissão", o processo é descrito com uma voz distante, nunca despida de um carisma contraditório, fundado no humor misantropo e num certo prazer do protagonista em ser repulsivo. É o que faz o livro avançar e florescer em meio a recursos quase proibidos na ficção atual, como longos diálogos didáticos e longas digressões filosóficas.
Ao final dessa distopia fatalista, sem nostalgia de tempos mais heroicos e felizes, e muito menos do que restou da civilização de bem-estar social, o narrador escolhe seguir os apelos do estômago e da libido. Não deixa de ser um horizonte moral. Pode-se achá-lo mesquinho, mas Houellebecq o defende com brio literário –de cabeça erguida, sem concessões.
Texto de Michel Laub, na Folha de São Paulo.
Texto de Michel Laub, na Folha de São Paulo.
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