quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Retrato do artista quando...

Retrato do artista quando...

Em seu novo livro, Sarah Thornton, autora do best-seller 'Sete Dias no Mundo da Arte', perfila de Damien Hirst a Beatriz Milhazes para definir o que faz um artista hoje
SILAS MARTÍENVIADO ESPECIAL A MIAMI

"Quando entro no ateliê de um artista, sinto uma energia estranha", diz Sarah Thornton. "É como outro planeta."
No burburinho do lounge VIP da feira Art Basel Miami Beach, longe dos artistas e esbarrando nos colecionadores, a autora do best-seller "Sete Dias no Mundo da Arte" tenta me explicar o que motivou a escrita de seu mais novo livro.
Depois de dissecar com acidez os bastidores desse universo em "Sete Dias", a jornalista canadense, que escreve sobre arte para revistas como a "The Economist" e a "New Yorker", passou os últimos sete anos visitando ateliês de artistas visuais no mundo todo - de Beatriz Milhazes, no Rio, a Ai Weiwei, em Pequim- fazendo uma única pergunta.
"Queria saber o que é um artista real, autêntico, crível", diz Thornton. "É impossível explicar como um artista ascende à fama global olhando só para seu trabalho. Era preciso ver como eles navegam pelo mundo da arte, como tratam colecionadores e críticos, como tiram selfies com os fãs. Tudo isso é parte da obra."
Ou seja, Thornton acredita ter descoberto no jogo de aparências que domina a arte contemporânea uma chave para entender sua real essência.
Estruturado como um roteiro cinematográfico, "O Que É um Artista?", livro que sai no Brasil pela editora Zahar em abril, retrata 33 artistas em cenas, entre prosaicas e bizarras, ao redor do mundo, da abertura de uma retrospectiva de Jeff Koons, em Londres, a uma conversa com a mulher de Ai Weiwei, em Pequim, quando o artista estava preso.
Thornton, que é também socióloga, não chegou a uma resposta definitiva para a sua pergunta. Mas as tentativas de descrever o papel de um artista visual na sociedade contemporânea encheram mais de 400 páginas com ponderações e provocações.
Em alguns casos, o diálogo virou briga. Infeliz com seu retrato no livro, a artista norte-americana Cady Noland decidiu processar a autora.
Outros, como Damien Hirst, alvo de várias entrevistas no livro, preferiram não mais falar com ela, tentando barrar a ida de Thornton à sua retrospectiva em Doha, há dois anos, o maior gesto do artista para conquistar um novo mercado diante da queda de seus preços em países desenvolvidos.

MITOS E DÓLARES

Essa dimensão mercadológica, aliás, não fica de fora do radar de Thornton, mas ela amplia a ideia de quanto vale um artista ou uma obra para enquadrar também o que considera a moeda mais valiosa da indústria da arte.
"O que está em jogo nesse mundo é a credibilidade", diz a autora. "É a forma como os artistas contemporâneos comandam um séquito que faz com que alcancem preços tão altos. Não há meios objetivos para mensurar a qualidade do que fazem. Artistas precisam de mitos, porque dão mais energia, ímpeto e poder à obra."
Um mito poderoso, na opinião de Thornton, é a aura de inimigo do Estado que envolve Ai Weiwei, artista e ativista político chinês que está impedido de deixar seu país desde 2011, quando foi agredido pela polícia e passou três meses atrás das grades acusado de crimes como evasão fiscal e difusão de pornografia.
"Ele me disse que um artista é um inimigo das sensibilidades generalizadas, o que é uma ideia muito bonita", diz Thornton, sobre Weiwei. "Se fosse um cara no Brooklyn me falando isso, pareceria uma alucinação, porque o máximo que pode acontecer ali é apagarem seu perfil no Instagram. Mas ele vive sem liberdade de expressão."
Em contraponto, artistas histriônicos, como Damien Hirst e Jeff Koons, que viraram celebridades zombando do mercado com obras achincalhadas pela crítica, renderam retratos mais impiedosos.
"Talvez tenha me irritado mais com o Koons, mas ele me deixou escrever o que eu queria. Ele não parece real, só que é o jeito dele. De qualquer forma, não estou interessada nas máscaras rasas que eles usam, e sim na vida pública como um todo", diz Thornton. "O livro gira em torno dessas personalidades antagônicas."
Nesse ponto, nada parece mais contrastante que o retrato de Hirst como um bad boy de meia idade, incapaz de falar uma frase sem a palavra "fuck", e seu encontro em Nova York com a diva da performance Marina Abramovic, que manteve a pose esotérica, falando do artista como o "oxigênio da sociedade", enquanto discorria sobre moda.
Thornton também faz um retrato diferente de Beatriz Milhazes. No ateliê da artista no Jardim Botânico, no Rio, a autora enxerga além dos arroubos hedonistas e ultracoloridos de sua pintura e a descreve com uma postura ultradisciplinada, de exímia criadora de quadros ao mesmo tempo "barrocos e turbulentos" mas com grande "rigor estrutural".
Minutos antes de me encontrar em Miami, Thornton, aliás, estava no lançamento de um catálogo de Milhazes perto dali. Voltou com uma cópia autografada do livro e postou um selfie com a artista.
"Há um vício entre críticos que insistem em ver só as obras", diz. "Mas não sei como fingem não ver o que acontece ao redor. É impossível ignorar a presença do artista."

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