quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O xis do problema


O gráfico que ilustra a coluna expressa o que está em jogo no atual debate político-econômico brasileiro.
Ele mostra a evolução do salário médio real no Brasil de 2000 a 2013 e é parte do texto "Mercado de trabalho e evolução dos salários no Brasil" (www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/discussao/2014/TD_IE_013_2014_SUMMA.pdf), do professor da UFRJ Ricardo Summa.
Desde 2006, o país vive pequena era dourada no mercado de trabalho, com aumento persistente dos salários reais (descontada a inflação).
Summa apresenta razões para tal desempenho. O crescimento econômico criou uma relativa escassez de trabalho. O desemprego, após um pico em 2003, reduziu-se a taxas expressivas até atingir patamares historicamente baixos. Além disso, o longo período de queda reforçou a sensação de segurança dos trabalhadores e, assim, seu poder de barganha, revertendo a situação de fragilidade que vigorou nos anos 1990.
Esse poder de barganha foi ainda alavancado por duas políticas públicas. Uma foi a de valorização real do salário mínimo, que dobrou no período 2000-2013. Além de atingir diretamente 26,5 milhões de trabalhadores, sem contar os benefícios do INSS, o mínimo é referência para os pisos salariais e para o trabalho informal e o autônomo.
Também o seguro-desemprego contribuiu para reforçar a posição dos trabalhadores, em particular os de mais baixa qualificação, que puderam usá-lo nas trocas de empregos em busca de maior rendimentos De 2000 a 2012, além de ter tido ganhos reais nos benefícios, o número de seus beneficiários cresceu 100%.
Finalmente, embora a sindicalização não tenha subido, o Brasil é um raro país em que ela não caiu na década passada. Isso permitiu a retomada silenciosa de certo ativismo sindical, que garantiu a continuidade das elevações reais de salários mesmo quando o crescimento do PIB caiu, a partir de 2011. As greves, com destaque para o setor privado, aumentaram, e o número de horas paradas, que até 2009 não passara de 30 mil, superou 60 mil em 2011 e quase chegou a 90 mil em 2012.
É verdade que os ganhos salariais não foram tão arrebatadores: até 2010 houve só a recuperação das perdas acumuladas de 2000 a 2004. Contudo, é patente a diferença de seu comportamento entre os períodos de 2000-2005 e de 2006-2013.
A inflação dos salários explica em grande medida por que a política econômica do PT, após a saída de Palocci da Fazenda e até recentemente, foi crescentemente atacada, em especial depois de 2010. E ainda dizem que qualquer inflação é sempre ruim e pior para os mais pobres.
A conjugação de crescimento mais baixo com poder de barganha dos trabalhadores mais elevado provoca a revolta das elites econômicas e impulsiona o clamor por austeridade (para os outros).
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. A estagflação da década de 1970, após a longa idade de ouro que vinha desde o pós-Guerra, gerou no mundo desenvolvido uma reação parecida e que tem sido duradoura.
Só que no Brasil a participação dos salários no PIB continua baixa em relação ao padrão internacional (superior a 60%): de 1995 a 2003 ela caiu de 42,6% para 39,5%, subindo para 43,6% em 2009, o dado mais recente disponível.
No entanto, num país fundado pela escravidão, a breve era dourada a partir de 2006 soa para muitos como uma profunda e indesejada subversão da hierarquia social.
A coluna "A questão do juro", de 29/1/2015, discutiu estratégias de redução da taxa de juro brasileira. Na introdução, disse que a ortodoxia entende que o juro é alto porque a poupança é baixa e que isso está relacionado a uma controvérsia teórica.
A opinião convencional crê nisso porque vê a poupança como requisito (prévio, portanto) do investimento. A heterodoxia acredita que a atividade alavancada pelo investimento gera a poupança que o financia.
Samuel Pessôa, em coluna homônima de três dias depois, pontificou: a "afirmação de Marcelo está errada. Não há essa controvérsia teórica. (...) Todos sabemos que, na relação entre poupança e investimento, este é soberano".
Porém, um pouco depois, sua conclusão foi que "não há alternativa para arrumarmos a casa que dispense a recuperação da poupança pública. Esse é o único caminho para conseguirmos baixar os juros". Poupança antes de tudo, então?!
Bom Carnaval a todos.


Texto de Marcelo Miterhof, na Folha de São Paulo

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