Num texto antigo, cômico e triste sobre a indústria dos "filmes adultos" (http://goo.gl/oMhkw), Martin Amis define uma das características da pornografia: a capacidade de identificar, e então explorar de forma vil e inapelável, o que o leitor-espectador-consumidor deseja.
É uma longa dança da sedução, para usarmos uma metáfora óbvia sobre o tema, um cardápio imenso de assuntos, registros e abordagens até que o sujeito(a) descubra, aos 13 ou 70 anos, no canto de uma foto, em dez segundos de um filme, aquilo de que realmente gosta.
Amis vê na pornografia a "morte dos sentimentos", o que faz sentido no seu relato. Fico em dúvida é se existe uma hierarquia tão clara de reações de um indivíduo diante de uma narrativa, tenha ela o caráter que tiver. Se a afinidade erótica, digamos assim, é tão menos nobre que a piedade, a revolta, o horror, a ternura.
Pense num melodrama. Se ele se basear num dos itens neutros do cardápio, os que não são feitos sob medida para mim --cenas de hospital, por exemplo--, a empatia tende a ser baixa. Já a situação que me interessa intimamente é outra coisa: eu nunca direi que "Marley e Eu" é um filme ruim, embora seja um filme muito ruim, porque vê-lo sempre me faz lembrar do cachorro da minha irmã.
Daí a questão: o que diferencia os apelos de uma obra "séria" daqueles de uma obra vulgar? Por que os clichês sadomasoquistas de "Cinquenta Tons de Cinza" falariam a instintos ou sentimentos inferiores aos de quem elogia as anunciadas cenas de sexo explícito dos filmes novos de Lars von Trier ("Ninfomaníaca") e Abdellatif Kechiche ("La Vie d'Adèle", que ganhou a Palma de Ouro em Cannes semana passada)?
É ingênuo achar que a arte paira acima da animalidade humana. Como prova a gastronomia, e não à toa ela é pauta de segundos cadernos, um prazer que parece apenas fisiológico pode se tornar categoria estética. Uma posta de atum vira experiência cultural por meio do discurso, que por sua vez se baseia em história, vivência, conhecimento técnico.
Com o sexo não é diferente. Claro que "Ninfomaníaca" e "La Vie d'Adèle" não equivalem a um vídeo do Porn Hub. Encaixada no discurso artístico, com sinais reconhecíveis de elevação --complexidade narrativa, manejo de signos, contexto, ironia, debate ético, autoria chancelada--, uma penetração pode transcender a esfera meramente física e representar o que alguns chamam de alma.
Mas, como no caso da comida, a mais elaborada das justificativas não elimina a apreciação pura, imediata. O paladar, a libido ou as inclinações estéticas só podem ser adestradas até certo ponto, e o crítico pode tão somente não gostar de atum. Um close de genitália causa excitação, indiferença ou repulsa, e nos três casos --antes de começarmos a elaborar o que acabamos de ver-- não estão em ação nossa inteligência ou gosto mediado pela cultura.
Por isso acho engraçada a pretensão de críticos que se dizem isentos de preconceitos e afinidades. Estendam o exemplo da genitália para itens supostamente mais respeitáveis, ou iscas supostamente mais honestas: a beleza do rosto da atriz ou do ator, o sentido a favor de uma ideologia, as piscadas de olho da obra para serem reconhecidas como sinal de erudição pelo público.
Um bom exercício depois de ler textos cheios de certezas sobre o que é bom ou ruim, puro ou impuro na arte, é botar o nome de quem escreveu no Google Images. Ali estará, na escolha de suas roupas, de seu penteado, da pose para a câmera, a lembrança de um ser humano como todos nós, sujeito aos estímulos citados e a tantos outros, cuja resposta depende de mais fatores --alguns aleatórios e inconscientes-- que os ensinados em Redações e universidades.
Avaliar com honestidade uma obra não é superar essa limitação, e sim reconhecê-la. O lugar-comum "tudo é questão de gosto" tem muito de autoritário, porque algum consenso cultural a história pode e deve formar. Só não dá para desprezar assim de pronto a subjetividade. Entre o sublime e o baixo-ventre, com todos os humores e rancores do caminho, a distância é menor do que parece.
Texto de Michel Laub, na Folha de São Paulo.
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