quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Na maioria dos casos, o estudante começa a estudar só na pós-graduação

O currículo escolar, na Itália da minha infância, era assim: depois do maternal, que não era considerada escola, havia cinco anos de escola primária, três anos de média e, enfim, cinco de liceu.
O liceu levava ao exame de maturidade e à possibilidade de acessar a universidade. A maturidade clássica dava acesso a todas as faculdades, a maturidade científica só permitia se inscrever nas faculdades científicas.
Minha geração foi perseguida pelo azar –ou pela sorte, essa é a questão. O fato é que as reformas escolares facilitadoras sempre aconteciam logo depois da gente.
Fomos os últimos a ter que passar por um exame no fim do terceiro e do quinto ano do primário. Um belo dia, algum ministro achou que não fazia sentido submeter a vexames os alunos da escola obrigatória. Todos iriam até o fim da escola média: por que testá-los e avaliá-los?
E não seria melhor "simplificar" o programa para que todos terminassem sendo aprovados? Pronto, o latim saiu da escola média. O liceu sofreu em consequência: os alunos tiveram que começar, ao mesmo tempo, latim e grego antigo. E por aí vai.
Os progressistas se vangloriavam de "incluir" assim os alunos das classes menos favorecidas. De fato, era o contrário: eles conseguiram "excluir" esses alunos da possibilidade de acesso a uma fatia considerável de saber.
Cá entre nós, "escola obrigatória" não significa apenas que os jovens são obrigados a frequentar as aulas até uma certa idade, significa também que o Estado tem a obrigação de lhes ensinar o que está no programa. O Estado, quando fracassa, se safa da obrigação decretando que não era preciso conhecer as matérias que ele não soube ensinar.
Os "reacionários" gritavam com razão: vocês estão nivelando por baixo. Era em vão, o clichê sendo que todos os jovens seriam muito mais interessados por uma pelada do que pela leitura de Tácito.
É uma obviedade? Não, essa é a crença de uma geração de adultos narcisistas, decididos a criar rebentos que fossem caricaturas de seus próprios sonhos confusos de felicidade e folga.
Ou seja, alguns adultos a fim de férias imaginaram que jovens preguiçosos e ignorantes seriam felizes e, a partir disso, privaram as crianças de aprender coisas que tornariam o mundo infinitamente mais interessante para elas. Depois disso, curiosamente, os mesmos adultos queixaram-se de que as ditas crianças pareciam sempre entediadas.
Os "progressistas" também se tornaram, paradoxalmente, os defensores do funcionalismo da produção: para o que servem o latim, o grego, o próprio italiano clássico, a filosofia, a história, a história da arte? A indústria não precisa de letrados, mas de trabalhadores que participem do processo produtivo. Ler latim e filosofia não adianta nada; o que adianta é saber lavrar ao torno. Falar a norma culta da língua também não adianta nada; o que adianta é a eficiência.
As coisas continuam assim, não só na Itália. Na grande maioria dos casos, um estudante começa a estudar só na pós-graduação. E há bases que são perdidas para sempre.
Pensemos agora no sucesso dos livros de Dan Brown (e dos filmes relativos, desde "O Código da Vinci"). "Inferno", o filme adaptado do quarto romance das aventuras do professor Robert Langdon, "simbologista", entrou em cartaz agora.
Nos livros de Brown, uma cultura de bom vestibulando descobre e decifra sinais ocultos, resolvendo o mistério da hora, salvando assim o mundo e a verdade.
Li "Inferno" em 2013, quando saiu. Gostei de ver que o conhecimento da "Divina Comédia" e da história da arte de qualquer estudante italiano de liceu servia para revelar sinais ocultos mundo afora. Mas isso com uma ponta de melancolia, porque esse conhecimento era o privilégio do professor Langdon e não mais o patrimônio banal de todos.
A reforma escolar aparentemente "progressista" produziu o triunfo absoluto do elitismo. Agora, um povo privado de seu direito à cultura, em geral, não encontra o simpático Robert Langdon, mas o obscurantismo –religioso ou não.
O cidadão entediado e iletrado espera que outros, os quais sequer leem o latim da Bíblia Vulgata e ainda menos o grego e o aramaico originais, digam-lhe quem ele é e qual é o sentido de sua existência.
Robert Langdon, libera nos et ora pro nobis.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.

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