Uma colagem de textos de terceiros que eu ache interessante. Este blog sucede as cópias de texto que eram feitas em Voltas em Torno do Umbigo e em Ainda a Mosca Azul. 11/01/2011.
sábado, 1 de outubro de 2016
Julgamento do massacre é exemplo do processo penal de exceção vigente no país
Nunca superamos a cultura da escravidão. Se antes identificávamos casa grande, senzala e capitães do mato como elementos sociais bem delineados, hoje devemos compreender a estrutura camuflada na qual convivem veladamente Estado de direito, Estado de exceção e polícia militar.
Em 1861, no “Diário do Rio de Janeiro”, Machado de Assis denunciou a dicotomia entre um Brasil oficial e um Brasil real, ainda em 1861: “Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”. Não apenas seguimos com países distintos coexistindo numa mesma roupagem, mas institucionalizamos as diferenças por meio da aplicação do direito.
A casa grande enquanto reduto do senhorio deu origem à forma jurídica de um Estado pretensamente democrático de direito destinado à população incluída, onde direitos e garantias fundamentais são assegurados de acordo com a conveniência de um pensamento dominado pela elite econômica.
Em situação diametralmente oposta, a senzala evoluiu para um Estado de exceção permanente destinado aos excluídos, onde vige a lógica do combate seletivo à população pobre e marginalizada por meio da imposição do medo e do terror a partir da aplicação severa das normas incriminadoras e negação ao direito de defesa.
Não é difícil perceber que a missão outrora atribuída aos capitães do mato, agentes da repressão e castigo aos escravos, foi confiada à Polícia Militar ― instituição incompatível com um regime democrático ― que atua, por um lado, como força de proteção dos interesses (bens jurídicos?) da classe dominante e, de outra parte, como força de ocupação territorial e repressão à população pobre.
Como nos ensina Pedro Serrano, essa é a lógica do Estado de exceção contemporâneo: combater o inimigo com aparência de legalidade institucional. Nesse contexto, o sistema de justiça criminal desempenha a função de agente da exceção, com o intuito de atribuir legitimidade à prática de medidas essencialmente autoritárias com verniz de legalidade.
Ao contrário do Direito Penal do Inimigo à moda de Günther Jakobs, não temos dois direitos penais regulamentados abstratamente de forma distinta para cidadãos e inimigos (tal qual o combate ao inimigo terrorista estadunidense e seu Patriotic Act).
Em nosso ordenamento jurídico, vige oficialmente o mesmo direito penal, as mesmas normas do sistema criminal, porém aplicadas e interpretadas de modo diferente por meio do que temos denunciado como processo penal de exceção.
Se o inimigo de séculos atrás era dominado no contexto de uma relação escravocrata, atualmente é o sistema de justiça criminal quem desempenha a mesma função. Segundo levantamento realizado pelo IDDD, mais de 90% dos presos entrevistados respondem por crimes contra o patrimônio (furto, roubo e receptação) ou tráfico de drogas: eis a pura e simples criminalização da pobreza.
O inimigo interno veio da senzala, é o pobre e quase sempre negro, ou quase negro de tão pobre, como bem retratado por Caetano Veloso, afinal são “111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, quase brancos quase pretos de tão pobres, e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.
O discurso hipócrita por trás das medidas de exceção atende aos anseios autoritários do senso comum, segundo os quais “direitos humanos não se aplicam a bandidos” ou “bandido bom é bandido morto”.
Sem a pretensão de uma análise técnica sobre o julgamento proferido pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, limito-me a destacar os argumentos lamentavelmente apresentados pelo desembargador Ivan Sartori na sessão da última terça-feira (27/09): “Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do deve legal. Agora, não nego que, dentre eles, possa ter existido algum assassino“.
Ora, como adotar a tese de legítima defesa diante da execução de 111 presos (nenhum policial morto), a maioria dos detentos atingida com tiros na cabeça e pescoço, assassinados dentro das celas, alvejados covardemente pelas costas? Nem é preciso dizer que o Código Penal fala em uso moderado dos meios necessários para repelir agressão injusta como requisitos para caracterização da legítima defesa.
Como imaginar obediência hierárquica (estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal?) ou estrito cumprimento do dever legal (estrito. cumprimento. dever. legal.) diante da pilha de corpus nus em um mar de sangue?
Além disso, não é demais lembrar que, ao entrar no exame do mérito, a manifestação do relator viola de forma inadmissível o princípio constitucional da soberania dos veredictos. Óbvio, pois de nada adiantaria submeter alguém a julgamento popular se o Tribunal de instância superior pudesse alterar a decisão final dos jurados.
O fato de ter prevalecido entendimento diverso (também deveras controverso), adotado pelos desembargadores Camilo Léllis e Edison Brandão, pela anulação do julgamento em detrimento da absolvição direta dos réus ― caso a decisão não seja reformada, deverão ser submetidos ao Plenário do Júri novamente ― não atenua a gravidade da mensagem transmitida pelo relator desembargador Ivan Sartori.
Não defendo que a punição severa aos policiais pudesse servir de exemplo para reduzir a violência institucionalizada (penas criminais não se prestam a isso). Não tenho acesso os autos para avaliar a individualização das condutas ou a forma como os quesitos foram redigidos. Não reputo a violência da polícia militar como manifestação individual dos seus agentes, mas como fenômeno essencial a uma instituição concebida para a guerra.
Nesse contexto, a desmilitarização do policiamento ostensivo ― nos termos propostos pela Deputada Zulaiê Cobra em 1998 e bem justificados por Pedro Serrano― é o caminho democrático a ser trilhado, pois a segurança pública da sociedade civil não deve ser confiada a uma força de natureza militar, naturalmente incompatível com a ideia de proteção ao cidadão.
Em sentido diametralmente oposto, porém, ao legitimar o massacre do Carandiru, transmite-se mensagem em prol do autoritarismo, que pode ser interpretada como licença para matar a partir dessa forma sui generis de fuzilamento em “legítima defesa, obediência hierárquica ou cumprimento do dever legal”.
Fernando Hideo Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD), nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Texto do Justificando, via Jornal GGN
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário