Na minha escola a gente podia escolher entre o literário e o científico. Quem escolhesse o primeiro teria oito horas de filosofia por semana. Todas elas com o mesmo professor. Um sujeito que podia ser tudo menos simpático.
Levy Midon tinha uma barriga dura e um bigode ruivo de gaulês, como Abracourcix —mas sem o carisma. Não sorriu. Não perguntou nossos nomes. Na primeira vez que entrou na sala, tivemos a certeza de que nossa vida seria um inferno.
Um aluno falou, blasé, que aquela aula seria tempo perdido porque "filosofia não servia pra nada". Antes que o aluno terminasse, o sangue subiu à cabeça já vermelha do professor: "Nada serve pra porra nenhuma, seu imbecil!" ele berrava, batendo os punhos na mesa. "Você vai morrer! Não importa o que você faça! Sabe o que não serve pra nada? Você. Eu também não sirvo pra nada. Mas você serve pra ainda menos, porque você acha que serve pra alguma coisa." E ele foi acalmando, aos poucos, enquanto deixava claro o quão pouco servia a vida. Sem que percebêssemos, a aula tinha começado.
Quando descobrimos que ele podia surtar a qualquer momento, assistíamos à aula vibrantes e estarrecidos, como quem brinca com um tigre. Uma vez, falei que os franceses eram fascistas porque tratavam mal as crianças. Midon virou um camarão graúdo: "No seu país meio milhão de crianças mora na rua! E você está cagando pra elas! Fascista é você que se importa só com criança branca e rica." Iaaaaau, todos berravam, fazendo a famosa onomatopeia de humilhação moral, hoje talvez substituída por "Chupa!".
Sempre que consultado, o professor versava sobre qualquer assunto: futebol, cinema, dicas de masturbação, a vida íntima dos outros professores, sua própria vida íntima, a morte da mulher num acidente de carro. Tudo estava em pauta. A não ser o assunto da semana. Hegeliano, sobre atualidades não falava de jeito nenhum. "A coruja de minerva só levanta voo no crepúsculo", dizia, e calava-se.
Ficamos amigos dele. Quando se apaixonou, levou a namorada pra sala pra que a gente a conhecesse. Quando me formei, não sabia o que cursar. Tinha medo de, escolhendo a literatura, ser pobre pra sempre. Perguntei a ele o que achava. "Você já escolheu", ele disse "quando escolheu um professor pobre pra escolher. Você não perguntou a um banqueiro. Essa é a tragédia da vida, meu amigo. Você não consegue não-escolher." Nunca mais nos encontramos.
Quarta-feira visitei a escola. Perguntei por ele. Morreu no início do ano, disseram-me. Do coração.
Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo.
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