Era uma vez uma cidade que se considerava "a locomotiva do Brasil", mas
cuja tara rodoviária era, ironicamente, uma das responsáveis por quase
não haver locomotivas no Brasil. O lema escrito no escudo da cidade, em
latim, era "Não sou conduzido, conduzo", mas bastaria a ela olhar em
volta para suspeitar que não fosse especialmente boa na condução. Em
cima da frase em latim, no escudo da cidade, havia uns ramos de café, um
castelinho e um braço de armadura segurando uma alabarda. O café era
uma homenagem à cultura responsável pela derrubada de boa parte da nossa
mata atlântica no passado, o castelinho, uma premonição dos prédios
neoclássicos no futuro, e a armadura, uma intuição do que seria a nossa
polícia, sempre.
Era uma vez uma cidade que se considerava "de primeiro mundo", mas
tratava só metade do seu esgoto e reciclava só 3% do seu lixo. Os rios a
cruzarem a cidade eram águas mortas a levar nossas fezes, pneus e
garrafas na mesma direção em que, séculos atrás, rumaram os bandeirantes
para caçar índios e pedras preciosas.
Era uma vez uma cidade que se considerava moderna, mas onde gays
apanhavam na rua, crianças dormiam embaixo das pontes e as margens do
Ipiranga ainda ouviam, em pleno século 21, o brado retumbante: "Você
sabe com quem está falando?!"
Era uma vez uma cidade que se orgulhava de seu espírito empreendedor,
mas onde alguns dos maiores empreendedores se viam envolvidos em
escândalos de pagamentos de propinas para políticos, visando assim
garantir o monopólio do empreendedorismo.
Era uma vez uma cidade que se orgulhava de ser o berço dos dois partidos
a governarem o país nas últimas duas décadas, mas cujos partidos se
viam envolvidos em escândalos de recebimento de propinas de empresários,
visando assim garantir o monopólio da governança. (Contra um dos
partidos, é verdade, havia muito mais provas do que contra o outro, o
que talvez se explique, entre outras razões, pelo fato de que só um dos
partidos vinha sendo sistematicamente investigado.)
Era uma vez uma cidade em que a pobreza era feiíssima –centro degradado,
oceanos de autoconstrução sem árvores ou praças, fios legais e ilegais
fatiando o céu–, a classe média era feiíssima –avenida Santo Amaro,
Eusébio Matoso, shopping Eldorado– e a riqueza era patética –mansões
"peru no pires" estilo Casa Branca, prédios chamados
"Maison-sei-lá-o-quê" e "Villa-não-sei-das-quantas" com colunas jônicas e
pinheirinhos a cinquenta metros de altitude.
Era uma vez uma cidade em que matar 111 presos desarmados era
considerado "legítima defesa", mas quem saísse para protestar contra o
governo poderia ser encarcerado e enquadrado na lei antiterrorismo
–antes mesmo da manifestação.
Era uma vez um país em que acidentes de trânsito matavam mais de 50 mil
pessoas todo ano, num planeta que vinha cozinhando por causa da queima
de combustíveis fósseis. Era uma vez uma cidade que, a menos de uma
semana da eleição municipal, tinha nos três primeiros colocados nas
pesquisas defensores ferrenhos do aumento da velocidade dos automóveis e
de menor rigor na aplicação das multas de trânsito –as melhores
respostas, sem dúvida, para os enormes desafios daquela cidade, daquele
país, daquele planeta.
Era uma vez uma cidade.
Texto de Antônio Prata, na Folha de São Paulo.
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