Se o Brasil se inclui nos regimes chamados de democracia representativa, como a Constituição se esforça para sustentar, ou o batismo do regime está errado ou o que aqui se pratica não é democracia representativa. Esta é a verdadeira mensagem das eleições recentes, reiterada com números vergonhosos na tentativa de afinal ser notada no que de fato diz.
As duas principais cidades ilustram a incógnita, não por lhes ser exclusiva, mas por sua maior ressonância. Em São Paulo, João Doria é saudado por vencer no primeiro turno paulistano, recebendo maioria absoluta de 53%. Com isso, diz a quase totalidade dos comentários, os primórdios da sucessão presidencial em 2018 recebem nova configuração, saindo Geraldo Alckmin, patrono de Doria, fortalecido com e no PSDB.
No Rio, Marcelo Crivella foi levado ao segundo turno com 28%, contra Marcelo Freixo e seus 18%. O prefeito Eduardo Paes, diz a quase totalidade dos comentários, teve o seu futuro político posto sob sombras, e o PMDB, alijado do segundo turno, enfraquecido pela rejeição ao candidato de ambos, Pedro Paulo.
Os eleitos em definitivo e para segundo turno, em São Paulo e Rio, representam a quem e o quê, para merecer o direito e o poder de governar as duas maiores concentrações humanas do país? Apesar de discreta, foi possível descobrir no noticiário que a quantidade de eleitores que recusaram seus votos aos três mais votados, em São Paulo e no Rio, é maior do que os votos recebidos por cada um deles. O resultado oficial não sofre consequências porque a esperteza injetada na lei eleitoral, a que introduziu o segundo turno, fixa os totais dos candidatos depois de excluir do verdadeiro total geral os votos brancos e os nulos. Como se estes não fossem opiniões eleitorais –a reprovação de todos os candidatos– ou seus autores nem existissem.
Mas continuam existindo, continuam cidadãos e continuam a ter opinião, inúmeros com opinião ativa. À parte o voto que cada um dê ou recuse, os eleitores são o que a sociedade tem de mais legítimo, do ponto de vista institucional: são os que falam oficialmente por todos. Não pela lei eleitoral em vigor, cujo sentido é impedir a democracia representativa.
Os 53% obtidos por João Doria são 53% dos votos que a lei autoriza computar para fixar o total de votos aos candidatos. Assim retirados os votos brancos, os nulos e juntadas as ausências, os 100% de eleitorado paulistano caem para o equivalente a 61,5%. Os 53% desse novo percentual é que revelam a parte dos paulistanos que votaram em João Doria: 32%.
É isto: João Doria torna-se prefeito por preferência de um eleitorado que não chega nem a um terço dos cidadãos habilitados a votar em São Paulo. Logo, Doria vai administrar a maior cidade brasileira como representante apenas de uma minoria. E recusado na escolha de 68% das 8.886.159 vozes da cidadania paulista.
No Rio, o mesmo ajuste dos eleitores à sua verdade e das urnas à sua realidade, para os dois caminhantes ao segundo turno, o resultado é ainda mais dramático. Os 28% oficiais de Marcelo Crivella são, na verdade, 16% do total verdadeiro de eleitores. Os 18% de Marcelo Freixo são, de fato, 10,5% do eleitorado. Se vitorioso no segundo turno, o primeiro o será foi depois de excluído na escolha de 72% dos cidadãos do Rio; o outro, recusado por 89,5%.
A democracia eleitoral sem representantes autênticos da preferência majoritária não é representativa e não pode ser democracia. Tal realidade abarca toda a política, que tem seus controles primordiais determinados em eleições majoritárias, de presidente, governadores e prefeitos, sujeitas à perversão das verdades eleitorais. Aí está uma das mais fortes causas da já insuportável deterioração da política no Brasil.
Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.
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