Ricardo pediu demissão do trabalho pra poder terminar, finalmente, o seu
romance. Ricardo gostava do seu trabalho em um prédio na Berrini, mas
não gostava nem do prédio e nem da Berrini. Gostar não bastava, amor
mesmo ele tinha pela literatura.
No primeiro dia em casa, entendeu que sem uma porta delimitando o
escritório seria impossível. A criança berrando, a empregada puxando
papo, a mulher ligando. Até o arquiteto terminar a reforma foram sete
semanas sem nenhuma linha escrita por Ricardo.
Isolado em sua ilha criativa, Ricardo entendeu que sem ar-condicionado
seria impossível. Teve que quebrar as paredes recém-levantadas pra meter
um Split Inverter. Foram mais 16 dias sem nenhuma palavra escrita,
apenas alguns xingamentos por e-mail para a Fujitsu porque eles
atrasaram dois dias.
Congelado e isolado em seu escritório com frigobar (notou que seria
impossível escrever sem um frigobar), Ricardo entendeu que só tem
assunto quem está fora de casa, vivendo a vida ou simplesmente vendo a
dos outros. Resolveu comprar um laptop e se aventurar em um café. Sempre
achou muito chique pessoas que "escrevem em um café". Tentou um perto
da sua casa, mas ficou travado. Tentou um bem longe da sua casa e
continuou travado. As pessoas falam muito alto nos cafés.
Ricardo concluiu que o problema era São Paulo. Essa cidade combina com
prédios na Berrini e não com literatura. Comprou então um terreno
pequeno no meio do mato e, nos quase dois anos que demorou pra
construir, encher de móveis e a Net realmente aparecer, não escreveu
nenhuma linha do seu romance. Claro! Era impossível tocar o mais divino
em si enquanto estivesse estressado com uma obra que não acabava nunca!
E, falando em obra, daqui a pouco o mundo saberia do que ele é capaz.
A mesa de madeira de demolição era voltada para árvores. A cadeira
estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na lombar, e o
computador, em cima de livros de arte sacra, estava na altura mais
adequada em relação ao seu problema na cervical. Agora vai! Ricardo
escreveu a primeira frase "Era uma manhã como outra qualquer quando...".
Achou a frase uma boa de uma bosta e mudou para "Não fosse uma manhã
qualquer quando..." e deduziu que essa era pior ainda. A casa inteira
fedia mofo com cachorro molhado. Quem é que escreve num lugar desses?
A grana foi acabando toda, a mulher foi pagando tudo, o filho foi
crescendo e demandando mil coisas e Ricardo sumiu. Por dias a família
não teve notícias do escritor até que, em uma manhã como outra qualquer,
ele apareceu fantasiado de mendigo. Achou que dormindo na rua teria
assunto pro livro. E você escreveu alguma caralha, seu desgraçado? A
paciência da pobre esposa estava mais surrada que a roupa de Ricardo. A
resposta era: não. Infelizmente ele foi obrigado a trocar seu laptop por
uma manta quadriculada de lã, em uma madrugada fria.
Ricardo tentou Paris, cocaína, tatuagem, depressão, traição,
homossexualidade, acupuntura, suicídio e curso de escritor na Vila
Madalena. Nenhuma dessas coisas resultou em romance, mas Ricardo sabe
bem o motivo: ele ainda é muito novo. Agora, de volta ao prédio na
Berrini, ele planeja, em breve, fazer o que sempre quis: largar tudo pra
escrever seu romance. Quem sabe um dia.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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