No fim dos anos 1950 ou no começo dos 1960, eu atravessei a Espanha, de
leste a oeste, viajando de carro com meus pais. Íamos da Itália até a
Andaluzia.
Naquele ano (que não sei qual foi), a administração das rodovias
espanholas fazia campanha contra as mortes nas estradas. Os motoristas
eram incitados à prudência por grandes cartazes que assinalavam
sobriamente: "Aquí un muerto", "Aquí dos muertos" —o máximo que vi foi
"Aquí cuatro muertos".
Era só isso. Sem descrições das circunstâncias, o acidente, às vezes,
parecia inexplicável —por exemplo, no meio de uma linha reta quase
deserta. Talvez alguém tivesse dormido ao volante.
Quando passávamos por um cartaz, meu pai diminuía mais ainda sua velocidade, que nunca era grande.
Me lembrei disso ouvindo um candidato à Prefeitura de São Paulo propor o aumento da velocidade máxima nas marginais.
A diminuição do limite de velocidade nas marginais resultou numa
diminuição dos acidentes e dos mortos. Certo, todos achamos que somos
tremendos motoristas e o verdadeiro perigo não é a velocidade, mas a
imperícia dos outros (nunca a nossa); achamos isso, mas nos
envergonhamos desse nosso pensamento.
A proposta serve para bajular e autorizar nossa vontade infantil de meter o pé no acelerador —doa a quem doer.
Enfim, para a próxima prefeitura, eu tenho uma proposta. Poderia se
chamar "projeto memória" (talvez possa ser bancado pelo setor privado).
Sei que a segurança é tarefa do Estado e da Federação, não da
prefeitura, mas minha proposta não é bem uma medida de segurança.
Assim como os espanhóis fizeram nas suas estradas nos anos 1960 ou 1950,
proponho que a gente decida não se esquecer. Em cada lugar onde houve
um assalto nos últimos 15 ou 20 anos, sugiro que um cartaz assinale:
"Aqui um assalto", ou dois, ou três (será 30% do que aconteceu de fato,
porque a maioria das vítimas não registra B.O.).
Também, em cada lugar onde houve morte violenta, escreveremos "Aqui um
morto", ou dois, ou três ou mais (as mortes são sempre declaradas, e o
registro será fiel). Poderíamos criar um código que dissesse se morreu
um policial, um bandido ou um cidadão, vítima ou passeante.
Segundo um relatório de janeiro de 2016, das 50 cidades do mundo com
maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes, 21 são brasileiras
—isso excluindo os países em guerra aberta.
Considerado o tamanho da população, São Paulo talvez seja a cidade
brasileira menos violenta. Mas, se a comparação for com o resto do
mundo, a história é outra.
O essencial, para mim, é que a lembrança dos mortos é sempre necessária
para saber quem somos. Sinto-me em casa em Veneza, mais do que em Milão,
porque Veneza é uma cidade habitada por espectros.
Não digo assim apenas na esperança de amedrontar os turistas —não é
preciso: as ruas venezianas são abarrotadas por fantasmas do passado,
numerosos demais para que eu enxergue os turistas, por mais que eles
circulem em hordas.
Poderíamos chegar a um resultado análogo, começando pelos nossos mortos
da guerra urbana. Talvez os turistas se interessem, aliás: já existem
visitas guiadas aos monumentos da cidade, poderia haver visitas guiadas
aos lugares dos assaltos mais frequentes —quem sabe com encenações, para
estrangeiros verem como é.
Você perguntará: por que tornar a violência urbana mais presente, mais
inesquecível? Para a gente ficar mais esperto, deixar o computador em
casa e esconder celular e relógio em certas ruas? Não é só isso.
Então para o quê? O espetáculo constante das feridas da violência no
nosso tecido social talvez nos ajude a encarar (e sarar?) nossa dupla
herança maldita —a de ter nascido como colônia de exploração e de ter
explorado corpos escravos por séculos. Com a consequência, que é quase
norma cultural, de arrancar do outro qualquer coisa que desejemos e
subjugá-lo até à morte.
Seu W., funcionário meu, reúne orçamentos para estofar uma poltrona; um
estofador lhe diz: se você me escolher, pode aumentar em 20%, que fica
com você. O mesmo estofador se indigna com a corrupção de governos
petistas e empresários. Ele não se dá conta de que ele pratica o mesmo
jogo da propina.
Nota: Antes que saia de cartaz, não perca "Loucas de Alegria", de Paolo
Virzi. É um dos filmes mais "justos" que já vi sobre amizade —e, claro,
sobre o sofrimento psíquico.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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