quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A culpa é sempre da vítima

Não me canso de repetir o que já publiquei sabe Deus quantas vezes neste espaço: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". Como se sabe, o pensamento não é meu (quem me dera!); é de Paulo Freire.
Quem pensa mal lê mal. E lê mal tudo: o mundo, a palavra, os fatos, a realidade, os textos, as canções, os filmes etc., etc., etc. Funestas, essas más leituras infernizam diretamente a vida de todos nós.
O que me leva a essas reflexões é o resultado de uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre violência sexual. Realizado pelo Datafolha e publicado nesta quarta (21), o estudo revela dados estarrecedores. Um deles: 37% dos entrevistados dizem que "as mulheres que se dão ao respeito não são estupradas". É mole?
Para mim, esses resultados são absolutamente coerentes com o pensamento do brasileiro médio, desses que todos conhecemos (temos pelo menos um deles no ambiente de trabalho, na família etc.).
Para essa gente, a culpa é sempre da vítima. Sabe o caso do cidadão que vai à delegacia para registrar o furto de um veículo e ouve o delegado perguntar algo como "O senhor queria deixar o carro lá e encontrá-lo na volta?". Pronto! O delegado acabou de dizer que sabe que "lá" a barra é pesada, então...
Então o escambau! Se ele sabe que "lá" a barra é pesada, por que não faz o que deveria fazer? Mas é mais fácil pôr a culpa na vítima.
E o pobre coitado que tem o azar de morar perto do largo da Batata, em São Paulo, quer exercer o seu sagrado direito de ir e vir, encontra meia dúzia de boçais quebrando tudo e acaba sendo obrigado a engolir gás de pimenta, bomba de efeito moral etc., que a preparadíssima PM paulista adora lançar aos quatro ventos para resolver toda e qualquer situação? O que diz o brasileiro médio? Uma pérola: "Quem mandou passar por lá? Ficasse longe".
A sucessão de argumentos inteligentes está por toda parte e muitas vezes é fomentada por quem deveria refletir antes de destilar bobagens. Quer um exemplo? Tiremo-lo do futebol: um árbitro fraco é escalado para um jogo decisivo. O pobre diabo começa a inverter faltas, é omisso em relação à disciplina etc., e tudo isso "irrita" os jogadores e a torcida, a qual joga objetos no gramado e dá outras aulas de civilidade.
O que dizem nessa hora muitos dos nossos "jornalistas" esportivos? "Eu não disse?! É um árbitro fraco, que erra muito, o que incita a violência". Quer dizer que a culpa dos atos violentos dos jogadores e torcedores é do árbitro? Haja atraso!
Quer outro caso emblemático? Lá vai: "Vou votar em Fulano porque ele é rico, por isso não precisa roubar". Que se faz com uma criatura dessas? Há solução para isso?
Por falar em candidato rico, um deles deu uma resposta genial a uma pergunta sobre a possível invasão de um terreno público: "Tenho 16 mil metros quadrados lá; não preciso desses 400". Quer dizer que, se não tivesse os 16 mil, poderia lançar mão desse recurso? Ai, ai, ai...
O que me espanta nisso tudo é ver que muita gente não liga lé com lé, cré com cré, isto é, não entende por que os resultados das avaliações dos nossos estudantes e do nosso ensino são as que são e por que não avançamos um milímetro em questões essenciais, por que somos os últimos dos BRICS em tudo etc., etc., etc. Pensar dói. Dói muito. Não pensar ou pensar mal, então... É isso.


Texto de Pasquale Cipro Neto, na Folha de São Paulo.

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