Por ser escritor, vira e mexe dou entrevistas e participo de conversas
com leitores. Em 20 anos de bate-papos, raríssimas vezes não me
perguntaram como eu lidava com "a ditadura do politicamente correto" ou
se não concordava que, por conta da "patrulha das minorias", o mundo
estaria ficando cada vez mais chato.
Costumo responder que sim. O mundo tá ficando chato há séculos, desde
que o iluminismo veio desaguar nessa xaropada de "liberdade, igualdade e
fraternidade". Bom mesmo era na época de Genghis Khan: você podia sair
galopando pelas vastidões asiáticas sem dar justificativa de nada a
ninguém, empalando livremente seus inimigos, pilhando seus vilarejos,
raptando suas filhas e esposas! Bons tempos! Mas aí o pessoal começou
com: ah, não pode mais matar! Ah, não pode mais pilhar! Ah, não pode
mais raptar! Toda essa chatice chamada civilização.
Deu no que deu: no século 21 não dá mais pra fazer uma piada com negro,
zoar um gay e o pessoal já chia. Tá chato, mesmo. (Geralmente, paro por
aí -e, caso ainda reste alguma dúvida, explico que estava sendo irônico,
que empalar os inimigos, embora possa parecer divertido para muitos,
não é um programa que eu subscreva.)
Não faço uso da ironia por achar, de forma alguma, que a liberdade de
expressão seja assunto irrelevante. Um mundo em que qualquer parte
ofendida por uma piada, uma ideia, uma manifestação artística pudesse
calar o ofensor seria terrível. Mas o que nós vivemos no Brasil é
exatamente o contrário.
Assista a meia hora de comédia stand-up nacional no YouTube, assista às
propagandas de cerveja na televisão ou ouça quase qualquer propaganda de
rádio (a mulher é uma idiota com um problema, o homem aparece com a
solução) e fica claro que quem está em risco aqui não é a liberdade de
expressão, mas as minorias. No entanto, em 20 anos conversando com
jornalistas e leitores, nunca me perguntaram: "O que você acha das
piadas racistas ou machistas ainda terem tanto espaço no humor
brasileiro?"
Percebo essa mesma inversão na escala das preocupações ao comparar o
peso da cobertura dos "black blocs" na imprensa à quase brandura das
denúncias contra o vandalismo policial.
É evidente que o quebra-quebra dos mascarados e a agressão a policiais,
jornalistas ou quem quer que seja devem ser divulgados e repudiados, mas
achar que os inimigos mais perigosos da democracia, no momento, são 20
cretinos mascarados é mais ou menos como acreditar que os maiores
culpados pela evasão fiscal no Brasil são os vendedores de maricas de
bambu e Durepoxi na frente do Espaço Itaú de Cinema.
Em 2014, num protesto no Rio de Janeiro, um rojão lançado por dois
manifestantes matou um cinegrafista. Naquele mesmo ano a polícia
brasileira matou 3.022 pessoas. Só nos três primeiros meses de 2015 a PM
paulista, então chefiada pelo secretário da Segurança Alexandre de
Moraes, matou 185 pessoas, promovendo o trimestre mais sangrento em 12
anos.
Os responsáveis pelo rojão passaram 13 meses presos e, felizmente, estão
sendo julgados. Já Alexandre de Moraes foi promovido a ministro da
Justiça. É importante que a imprensa acompanhe os desdobramentos do
primeiro caso. É incompreensível que a imprensa não se escandalize com o
segundo.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário