Na avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio, o fim de tarde de quarta-feira, dia 14, não foi nada insólito.
Desde o começo da Olimpíada, na hora em que as pessoas saem da praia e
se dirigem às paradas de ônibus, bandos de adolescentes praticam
arrastões. Talvez os moleques não queiram tanto roubar (celular à parte,
ninguém leva nada para a praia) quanto apavorar, suscitar gritos e
correria.
No dia 14, então, 92 jovens foram detidos –82 eram menores, 78 adolescentes e quatro crianças.
Segundo a reportagem do UOL (http://migre.me/v11ot), os adultos foram
presos, as crianças foram para um abrigo da prefeitura, e os
adolescentes receberam "apoio dos profissionais da Secretaria de
Desenvolvimento Social". Paira no ar uma certa vontade de distribuir
safanões –e não "assistência".
Graças ao artigo de Patrick R. Keefe na revista "The New Yorker" de 12
de setembro, li o livro-reportagem de Dan Slater: "Wolf Boys: Two
American Teenagers and Mexico's Most Dangerous Drug Cartel"
(meninos-lobos: dois adolescentes americanos e o cartel mais perigoso do
México). Slater reconstrói a história de dois adolescentes do Texas
(fronteira com o México) que se tornaram sicários no narcotráfico
mexicano, assassinando dezenas de pessoas com requintes de crueldade.
Julgados como adultos (possível nos EUA a partir dos 13 anos), ele foram
condenados à prisão perpétua sem redução de pena.
Slater se pergunta se os dois jovens deveriam ser considerados como criminosos ou como "vítimas" (do cartel mexicano).
Nessa direção, Keefe, no artigo da "New Yorker", nota que, em geral, as
crianças-soldados das guerras no continente africano nos parecem não ter
culpa: eles foram arrancados das suas famílias pelos senhores da
guerra. Em compensação, somos menos clementes com nossos adolescentes
criminosos.
Keefe propõe uma explicação: quanto mais as vítimas dos adolescentes se
parecem conosco, tanto mais tendemos a considerar que os jovens
criminosos são maçãs podres e, de uma maneira ou de outra, responsáveis
por sua podridão.
Ishmael Beah, ex-criança-soldado leonesa, autor de "Muito Longe de Casa"
(Companhia de Bolso), esteve na Flip de 2007. Ao conhecê-lo, era
impossível não apostar que, por horrorosa e sanguinária que seja a
infância de alguém, sempre existe uma chance de redenção.
Mas volto ao livro de Slater: lendo as conversas do autor com Cardona (o
jovem texano que mais se deixou entrevistar), a sensação é outra. O
adolescente não fugiu da fome nem foi arrancado de seu lar à força:
enveredou-se pelo crime por causa da grana, das minas, dos carros e das
roupas.
Para salvar Cardona, vamos fazer o quê? Acusar o "imediatismo"
materialista de nossa cultura? Problema: há milhões de adolescentes que
gostam de minas, carros, grana e roupas e não se tornam assassinos.
Alguém dirá que os outros adolescentes apostam no esforço e no trabalho,
enquanto Cardona escolhe a facilidade. Mas fazer carreira no crime,
como sicário, é mesmo uma "facilidade"?
O advogado de Cardona pediu uma pena menos drástica com estas palavras:
"Não sou Freud. Estou convencido de que Freud se divertiria à beça aqui.
Não sei qual foi a motivação dele [de Cardona]. Não sabemos o que o
leva a agir. Ninguém parece mesmo se importar com isso".
Os dois adolescentes do Texas desejavam coisas que muitos ou todos
desejam. Só que fizeram isso sem freio moral, sem empatia, sem compaixão
pelas suas vítimas e, ainda, se vangloriando de sua própria crueldade.
Freud e um eventual colega sociólogo (marxista ou não) talvez
encontrassem explicações ("desculpas"?) na suposta injustiça social ou
na neurose familiar. Mas dificilmente eles conseguiriam eliminar a ideia
de que os jovens texanos eram, simplesmente, ruins.
Essa ideia lhe inspira horror? Será então que você acredita que todos
seríamos naturalmente bons, à condição de não sermos estragados por
alguns percalços violentos de nossa infância?
Sabemos descrever bem o que é uma personalidade antissocial
(desinteresse pelos outros, mentira persistente, impulsividade,
agressividade, falta de remorso etc. –tudo isso, às vezes, junto com
hiperatividade, drogas, depressão). Suspeitamos de componentes genéticas
e causas ambientais e psíquicas (desamparo, desafeto familiar,
violências sofridas).
Mas duvido que a gente chegue um dia a explicar a história de um Cardona sem recorrer à hipótese da maçã podre.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário