O mundo assiste, perplexo, à ascensão de Donald Trump. "Como é possível?", perguntam-se analistas, na vã tentativa de traduzir o aparentemente inexplicável. A revista inglesa "The Economist" fez uma montagem com ele sobre a ilustração do Tio Sam, com o título: "Sério?". Sério.
A comparação com o imprevisível e grosseiro Donald faz a ensaiada e comedida Hillary parecer o Jimmy Carter. Na eleição com programas à Twitter, eleitores querem soluções curtas e rápidas (construir um muro,expulsar muçulmanos) para problemas complexos. Ninguém parece ter paciência ou tempo para a reflexão.
Trump é, por incrível que pareça, o que muito se desejou: um candidato incomum, verdadeiro rompimento com a política como é conhecida. Seu perfil é adequado para uma sociedade mediada pelo Facebook e sua retórica fanática, narcisista, imediatista, que busca a vitória completa e a aniquilação do adversário.
Essa visão fundamentalista impossibilita o diálogo, não reconhece o outro, nem vê legitimidade em seus direitos. É resultado de uma decadência de posições coerentes e ideologias políticas em nome de posturas pragmáticas, egocêntricas e barulhentas. Seu maior exemplo está em Vladimir Putin.
O "New York Times" relata que, no partido Republicano, os desesperados para derrubar sua candidatura gastam fortunas em comerciais de TV como oUnelectable, em que apresentam as posições racistas, sexistas e discriminatórias de Trump.
Os mais radicais falam até em tumultuar a convenção do partido, na tentativa de mudar as regras caso ele se qualifique. Isso não acontecerá. Fiéis ao princípio democrático, seus opositores Cruz, Rubio e Kasich já disseram que o apoiarão caso seja nomeado.
Alguns membros do partido Democrata riem da situação. Acreditando no crescente poder dos eleitores negros, hispânicos e mulheres, defendem que ele não será páreo para Hillary. Muitos, no entanto, entre eles o ex-presidente Bill Clinton, acreditam que a ameaça é séria.
Muitos dos que apoiam Trump abertamente não se encaixam nas divisões típicas de gênero, etnia ou idade. E são gente demais para que se configure uma anomalia. Se há um tanto de protesto, de Tiririca ou Enéas, no apoio ao homem da peruca loira e do bronzeado artificial, não se pode negar que ele tenha sua mística. Mesmo que não concordem com o ator, muitos se deixam impressionar pelo personagem.
No país que inventou o marketing, Trump é marca de poder. Mesmo que, como tudo em marketing, não corresponda a produto de igual qualidade. Na sociedade dividida entre"vencedores" e "perdedores", ele é quem quebra a banca. Na lógica rasteira da publicidade política, os Estados Unidos estão perdendo. Trump é um vencedor. Se for eleito presidente, todos vencerão.
Seus eleitores não procuram um político, mas um super-herói. Da mesma forma que os russos depois da confusão em que seu país se meteu depois do final da União Soviética, muitos sonham com uma mão forte que, em um mundo de incertezas, não tenha medo de exprimir suas posições inconformadas e críticas, de forma pública e sistemática.É a receita clássica para o autoritarismo e sua troca de liberdade por segurança.
A realidade é que desde os anos 1980 que os EUA não são um país de classe média, nem a terra da oportunidade. O sonho americano está cada vez mais distante da realidade. Há menos oportunidade nos EUA do que em qualquer outra nação industrial desenvolvida.
A ideia ingênua de que todos se beneficiam com investimentos nos "geradores de emprego" mostrou-se falha, e a ascensão social dos pobres, quase uma peculiaridade estatística.Essa desigualdade contribui para a instabilidade social, econômica e política.
Cidadãos de baixa renda, sem curso superior, massacrados por globalização e erosão do emprego, sentem-se abandonados justo quando mais precisam de ajuda. Esse sentimento de impotência é indicador muito mais claro do que fatores sociodemográficos.
Sem perspectivas ou modelos em um ambiente de concentração de renda e poucos direitos sociais, é compreensível que sintam-se vulneráveis, desprovidos de autonomia ou propósito.
Os impotentes, cheios de ressentimentos contra imigrantes e direitos das minorias, tem suas vozes amplificadas pelas mídias sociais, carregam rancor demais para qualquer tentativa de reconciliação com o diferente ou novo. É mais fácil entrar em guerra. Há 17 anos, a animação "South Park" já previa o cenário.
Eles acreditam no modo de pensar egoísta, à funk ostentação, do homem das torneiras douradas. Não pretendem mudar o sistema, mas desfrutar dele. A ganância popularizada por Ayn Rand e retratada pelo personagem de Michael Douglas em "Wall Street" deixou de ser caricatural para se transformar no novo normal, aceitável e até vista como virtude pela mídia de massa que promove "celebridades" em seus reality shows.
Três grandes pensadores teriam bastante a dizer a respeito do cenário político atual. Em um discurso em Harvard em 1978, o romancista Alexander Soljenítsin descreveu a natureza ilusória da liberdade que não fosse baseada na responsabilidade pessoal. Ele lamentou a fragilidade e inabilidade crônica das democracias em se opor à violência e ao totalitarismo.
O extremismo político manifestado por Trump mostra que um oportunista demagogo pode, como Adolf Hitler, se aproveitar de um país dividido. Em "Homens em Tempos Sombrios", a filósofa alemã Hannah Arendt descreve como muita gente boa, por falta de horizonte ou perspectiva, permitiu que o nazismo crescesse na Alemanha ao ficar apática e invisível.
Por fim, o intelectual e presidente de transição da Checoslováquia para a República Checa, Václav Havel, em "O poder dos despossuídos", defendeu que a ideologia é uma forma de se relacionar com o mundo. Ela traz a ilusão de identidade, dignidade e moral ao mesmo tempo que distancia as pessoas de suas práticas.
É uma forma de legitimar o cotidiano, um véu sob o qual gente comum pode esconder sua trivial adequação ao estado das coisas. Marx também falou algo a respeito, mas no estado de polarização em que está o nosso país, é quase arriscado citá-lo.
A resposta a Donald Trump está em uma prática que lhe é desconhecida e que o mundo das redes sociais nos priva. Ela se chama diplomacia, e se resume ao fato de reconhecer que o outro existe, compreender as diferenças e buscar adequações. É um exercício de paciência, nem sempre frutífero, mas claramente empoderador.
E certamente muito melhor do que a alternativa de viver sob as vontades e bravatas de um ditador qualquer.
Texto de Luli Radfahrer, na Folha de São Paulo.
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