domingo, 20 de março de 2016

Não é tão vermelho ou amarelo


Na última quinta-feira a minha amiga Marina me escreveu perguntando se eu teria tempo para um café. Se alguma coisa eu aprendi nessas quatro décadas sobre a Terra é que quando uma pessoa próxima te chama para um café é porque o assunto é sério. (Quando o assunto é leve, o convite é prum chope). No meio da tarde, a caminho da padaria, eu ia pensando: será que a Marina tá grávida? Tá doente? Tá se separando? Tá precisando de dinheiro?
Cheguei na hora marcada e ela já tava lá. Eu pedi uma Coca Zero, a Marina pediu um suco e mal o garçom virou as costas, ela soltou: "E aí, a gente não vai fazer nada?". "Sobre... Sobre isso tudo?". "É! O Brasil se desmilinguindo e a gente vai ficar de espectador? A gente tem que fazer alguma coisa!". "Que coisa?". "Não sei. Se eu soubesse, não tinha te chamado prum café".
Ficamos um tempo em silêncio, com esse olhar temeroso e estabanado com que temos assistido ao país se desmilinguir, ultimamente. "Eu realmente não consigo tomar nenhum lado", confessei. "Eu também não", disse a Marina. "Mas será que tem lado? Talvez achar que tem um único lado a ser defendido é o que justifica as barbaridades de todo mundo. É errado o Lula frequentar um sítio reformado de graça por empreiteiras. É errado a justiça fazer a condução coercitiva do Lula enquanto investiga o sítio. É errado colocar o Lula de ministro pra fugir da Justiça que o submete a coisas como a condução coercitiva. É errado vazar os grampos do Lula pra imprensa porque ele virou ministro. É um erro alimentando o outro. Enquanto isso o país sangra e as pessoas piram. Aonde é que vai parar?".
"Você pensa em fazer o que, Marina?". "Já disse que eu não sei. Mas eu tô assustada. Eu não quero que, tipo, daqui uns seis meses, um ano, aconteça uma desgraça e eu olhe pra trás e veja que eu tava de braços cruzados. Tá meio fevereiro de 1964". "Meio Venezuela". "Total Venezuela". "Cê acha que vai rolar alguma desgraça? Cê acha que vai ter golpe militar? Guerra civil?". "Sei lá! Mas o clima tá péssimo e só piora. Teve um pau no WhatsApp da família. Meu tio petista brigou comigo porque eu disse que a Dilma afundou o país e meu tio tucano brigou comigo porque eu disse que os anos Lula foram o melhor período da história do Brasil. Ele disse 'mas isso não justifica a corrupção do PT!'. Eu disse: claro que não! E o Fernando Henrique estabilizar a moeda também não justifica comprar a emenda da reeleição! E a emenda da reeleição não cancela tudo de bom que o Fernando Henrique fez. Ninguém é santo, ninguém é monstro. Nada é tão preto no branco, nada é tão vermelho ou amarelo."
O garçom trouxe as bebidas. Ficamos um tempo olhando pros copos. A Marina deu um sorriso desanimado. "Lembra quando parecia que a gente ia dar certo?". E, como que enviada para aumentar nosso desalento e me dar o final mais triste pra essa crônica, parou diante de nós uma menininha de uns seis anos, descalça, com a cara toda suja: "Compra bala, tio? Compra bala senão minha mãe não deixa eu ir pra casa. Compra?"


Texto de Antônio Prata, na Folha de São Paulo

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