Assisti a "Orgulho e Preconceito e Zumbis", de Burr Steers.
Eu não tinha lido o livro com o mesmo título, de Seth Grahame-Smith. Também tinha achado o trailer hilário: involuntariamente cômico. Entrei no cinema, portanto, perguntando-me: o que estou fazendo aqui? Eu logo saberia.
Jane Austen publicou "Orgulho e Preconceito" em 1813. É um grande romance de costumes, que revela os pensamentos e os valores dos (mais ou menos) privilegiados na Inglaterra de 1800. A moral da história ainda vale: por orgulho e preconceito, podemos desperdiçar nossa vida, renunciando a amores verdadeiros.
Apesar dos zumbis, o filme de Burr Steers é fiel ao espírito do livro de Austen. Aliás, diante da ameaça zumbi, algumas personagens adquirem dimensões interessantes: Mr. Darcy e Elizabeth Bennet têm em comum um espirito guerreiro –o qual, aliás, torna inesquecível a famosa "discussão" entre eles.
A Inglaterra de Grahame-Smith e do filme (também ao redor de 1800) deve se defender contra a invasão dos mortos-vivos. Londres é protegida por uma muralha, e quem reside no campo fortificou seu chalé ou seu castelo. Baboseira?
Tempo. Construir uma muralha ao redor da cidade para impedir a entrada dos zumbis? Inventar controles rigorosos para identificá-los? Isso é na Inglaterra de 1800 ou na Europa de 2016? São refugiados ou zumbis se pendurando no trem que atravessa o canal da Mancha? Ou derrubando portões entre Grécia e Macedônia?
Você dirá que os refugiados, à diferença dos zumbis, não mordem. Eu concordo com você, mas não sei se os europeus concordam conosco.
Primeiro, é sempre difícil fazer a diferença entre os que querem entrar para participar do baile e aqueles que, ressentidos, querem acabar mesmo com a festa.
Segundo, faz 1500 anos que os europeus se defendem de zumbis de todo tipo, e a memória coletiva é um tipo de herança genética –ela age em nós, mesmo que a ignoremos.
Em suma, eu fui assistir ao filme porque "sabia"(sem me dar conta) que ele era, para mim, estranhamente familiar –e não penso só na metáfora genérica dos abastados se protegendo dos famintos.
A Europa dos Estados centralizados que protegem seus cidadãos existe só após 1848. E antes disso?
Por que, desde o começo da Idade Média, torres e campanários surgem tão numerosos na paisagem europeia, tanto na costa quanto no interior? Para dar a alerta com sinos que fossem ouvidos de longe. Alerta contra o quê?
Desde o século 7, os europeus sobrevivem numa terra por onde passam hordas e gangues: são normandos, restos de exércitos dispersos, pestilentos sem nada a perder, bandidos. Todos querem saquear, queimar, estuprar, escravizar, matar.
Entre esses zumbis, depois que o Islã ocupou o Norte da África, no século 7, os mais ativos eram os piratas da costa berbere, ligados ao império Otomano. Eles matavam os inúteis e pobres, sequestravam os ricos (para pedir resgate) e vendiam os restantes como escravos.
Só no período final, de 1500 a 1800, na Europa (incluindo Islândia e Inglaterra), os piratas berberes capturaram mais ou menos 1 milhão de cidadãos (cerca de 1% da população de 90 milhões). Miguel de Cervantes, por exemplo, passou cinco anos sequestrado em Argel, esperando que seu resgate fosse pago.
Foram criadas ordens de religiosos, como os Trinitários, que se ofereciam para tomar o lugar dos sequestrados.
A partir de 1096, centenas de milhares de europeus participaram das Cruzadas. Queriam o perdão de seus pecados? Queriam retomar Jerusalém e o Santo Sepulcro? Queriam aventura e saque? Sim, tudo isso, mas o camponês do vilarejo talvez quisesse sobretudo o fim da precariedade de seu destino, ou seja, dos piratas.
O Canavese, de onde minha família é originária, está no norte do Piemonte, longe do mar, perto das montanhas entre Itália e França. Por mais de meio século, desde 911, cada passagem que permitia a travessia dos Alpes era controlada pelos piratas berberes. Grenoble e Sisteron, do outro lado, foram ocupadas por eles; mais perto da costa, foi o caso de Marselha, Narbonne, Carcassonne...
Agora, é verdade: comparados com os zumbis do passado, os refugiados são fichinha. Enfim, veja o filme e divirta-se, enquanto der.
Para saber mais, sugiro começar por Robert Davis, "Christian Slaves, Muslim Masters", da editora Palgrave MacMillan.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário