Torturados buscam justiça na Espanha
Por JIM YARDLEY
MADRI - Quando era estudante universitário esquerdista, José María Galante foi algemado ao teto de uma câmara de torturas em um subsolo, ficando suspenso no ar. Um inspetor de polícia riu e debochou dele, fazendo poses de artes marciais antes de chutar e socar seu rosto e peito.
O homem que teria torturado Galante foi um célebre justiceiro da ditadura de Franco na década de 1970, conhecido como Billy the Kid pelo hábito de girar sua arma com o dedo no gatilho.
Assim, Galante ficou espantado quando, no ano passado, o localizou morando perto de sua casa, na capital Madri.
"O que pensei quando o revi pela primeira vez? 'Agora pegamos você, seu filho da mãe'", Galante se lembrou.
"Concordo com a ideia de reconciliação. Mas não é possível simplesmente virar a página, e pronto. É preciso ler a página antes de virá-la", disse.
Pela primeira vez, Galante e outras vítimas querem levar à Justiça Billy the Kid, cujo nome real é Antonio González Pacheco.
O caso está reabrindo o doloroso passado franquista espanhol e abalando o pacto político que ajudou o país a fazer a transição da ditadura para a democracia.
A transição democrática tem sido fonte de orgulho nacional na Espanha. Foi um período em que rivais políticos fizeram concessões consideradas responsáveis por possibilitar o nascimento de um novo país.
Após a morte de Franco, em 1975, uma lei de anistia abrangente absolveu a todos -esquerdistas e franquistas de direita- e incentivou uma espécie de esquecimento coletivo, em nome da reconciliação. A ideia era que a Espanha só poderia prosperar se olhasse para o futuro, não o passado.
Para vítimas como Galante, isso significou o fechamento da porta que levaria à justiça. Há mais de 40 anos os tribunais espanhóis se negam a ouvir casos como o de Billy the Kid.
Por isso Galante e outros levaram suas queixas à Argentina, evocando o princípio legal da jurisdição universal sob o qual certos crimes, devido à sua magnitude, atravessam fronteiras. Um juiz argentino agora busca a extradição de Pacheco e outro acusado de tortura.
Os tribunais da Espanha normalmente relutam em extraditar cidadãos espanhóis. Mas, seja qual for o resultado, o processo argentino está despertando velhos demônios na ex-metrópole.
Críticos dizem que o país precisa enfrentar seu passado e até mesmo revogar a anistia. Outros avisam que isso poderia levar a uma enxurrada de ações legais.
Hoje a política, as empresas e o Judiciário na Espanha ainda estão repletos de pessoas com vínculos diretos ou indiretos com o regime de Franco.
Recentemente um advogado de vítimas pediu ao juiz argentino a formulação de acusações criminais contra cinco ex-ministros da época da ditadura franquista.
"Acho que não seria bom para o país", opinou Ramón Jáuregui, deputado do Partido Socialista, que fez oposição a Franco nos anos 1970 mas reluta em romper o acordo que levou à anistia.
"Não sabemos onde isso vai começar e onde vai terminar. Se formos atrás de alguém que foi torturador na década de 1970, por que não movermos ações contra alguns ministros do governo de Franco que ainda estão vivos? Por que não questionar as cortes? Que limite vamos definir?"
O governo espanhol já enfrenta pressão crescente das Nações Unidas. Pablo de Grieff, um relator especial das Nações Unidas, disse que a Espanha está atrasada em relação a outros países europeus, quando se trata de lidar com seu passado recente.
Para ele, o governo espanhol fez muito pouco para ajudar vítimas da era franquista. Ele recomendou que a lei de anistia seja deixada de lado para permitir que as ações judiciais sigam adiante, ou na Argentina ou na Espanha.
"Certos problemas não desaparecem", disse De Greiff, relator especial para a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não reincidência.
"Eles não podem ser varridos debaixo do tapete. As pessoas não esquecem, e isso não surpreende."
Franco foi contemporâneo de Hitler e Mussolini, mas sua ditadura durou até a década de 1970, e seu legado é mais complicado e contestado pelos espanhóis.
Um dos advogados envolvidos na ação contra Pacheco, Carlos Slepoy, disse que as autoridades espanholas vêm tentando obstruir a ação, ao mesmo tempo em que depoimentos vêm sendo prestados em embaixadas argentinas pelo mundo afora.
"Esta coisa toda foi iniciada por duas famílias e algumas organizações de defesa dos direitos humanos", ele explicou.
"Agora há 350 ações judiciais, inúmeros depoimentos e um enorme movimento de apoio popular."
José María Galante já depôs na Argentina sobre o que viveu nos anos 1970, período em que as violações de direitos humanos teriam supostamente terminado.
Ele foi detido várias vezes por participar de protestos contra a ditadura e de um grêmio estudantil antifranquista.
Na prisão, foi espancado nos genitais e sujeito ao falso afogamento. "Billy the Kid se sentia imune ao castigo", disse.
"Ele nunca imaginou que seria pego. Nem se preocupava em obter informações [dos presos]. Só queria arrebentar pessoas."
Notícia do The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo.
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