O sempre instigante Hélio Schwartsman escreveu nesta Folha um artigo importante sobre o aborto ("Aborto, eleição e violinistas", 23/4/2014). Schwartsman tem razão: não há nada mais lamentável do que ver assuntos éticos importantes transformados em circo eleitoral.
Só não concordo com ele quando, a respeito de Eduardo Campos, o colunista não concebe que um socialista possa ser contra o aborto. Hélio Schwartsman ficaria espantado com a quantidade de "regimes socialistas" que tinham legislações antiaborto incomparavelmente mais "conservadoras" do que o Brasil.
E o inverso também é válido: basta conhecer os conservadores libertários dos Estados Unidos para encontrar posições radicalmente "progressistas" sobre o assunto. Em rigor, não existe "esquerda" e "direita". Existem apenas "esquerdas" e "direitas". No plural.
E depois existe o texto clássico de Judith Jarvis Thomson, que fez pelo aborto o mesmo que Henry Shue pela tortura: iniciou um debate ético que se prolonga até hoje.
Desde logo porque Thomson evita as discussões bizantinas sobre a "humanidade" do feto. O feto é um ser humano, admite ela. Mas isso não significa que todos os seres humanos têm igual direito à vida. Ou, como a própria escreve, o direito à vida não significa o direito de não ser morto. Significa, pormenor importante, o direito de não ser morto injustamente.
É no seguimento desse raciocínio que Thomson apresenta o famoso "violinista". Certo dia, acordamos ligados a ele. O violinista precisa dos nossos rins durante nove meses e uma sociedade musical, consciente da nossa compatibilidade renal, sequestrou-nos, sedou-nos e acoplou-nos o violinista. Será que temos o dever de ficar nove meses ligados a ele?
A essa pergunta eu respondo já: não temos. E, que se saiba, não existe nenhuma legislação equilibrada sobre o aborto que, em caso de violação ou de perigo para a saúde física ou psíquica da mãe, a obrigue a ficar nove meses ligada ao seu "violinista".
O problema com o ensaio de Thomson é que ele parte de um caso excepcional e até criminal --alguém me sequestrou para ligar um violinista aos meus rins-- para chegar a uma conclusão dogmática: nós só temos responsabilidades especiais por alguém se tivermos assumido tais responsabilidades.
Eis a fundamental fraqueza do ensaio: a sua insuficiente compreensão sobre a "ética da responsabilidade". Os filósofos Patrick Lee e Robert P. George, respondendo a Judith Thomson, sublinham precisamente esse ponto: nós temos certos deveres existenciais --para com os nossos pais, os nossos irmãos, os nossos amigos etc.-- que existem independentemente de os termos escolhido ou assumido.
Claro que podemos recusar tais deveres. Mas isso não apaga a existência desses deveres.
No caso do feto, e excetuando os casos radicais já referidos, a situação é ainda mais complexa tendo em conta a ligação biológica entre a mãe e o feto. O "violinista" é um estranho que abusa e parasita o corpo de outro estranho.
Mas será que Hélio Schwartsman poderá afirmar seriamente que o feto abusa e parasita o corpo de uma mulher? Será que o feto é assim tão criminoso como o violinista e a sociedade musical que sequestrou alguém para usar os seus rins?
É por isso que, na discussão sobre o aborto, existe um autor ainda mais estimulante do que Judith Thomson. O seu nome é Don Marquis.
Tal como a prof. Thomson, Marquis também não perde tempo com as discussões habituais sobre o estatuto do feto (é um ser humano? não é?).
Don Marquis prefere relembrar o básico: o feto é apenas o que fomos antes da nossa configuração presente. Ou, dito de outra forma, o feto será uma criança, um adolescente, um adulto --se não existir nenhum obstáculo terminal pelo caminho.
A questão fundamental está em saber que direito tem um adulto de ser esse obstáculo.
Ou, para usar a linguagem de Marquis, como justificar um ato que, ao terminar com uma vida, termina também com "todas as experiências, atividades, projetos e fruições que de outra forma seriam parte do futuro de alguém"?
O debate sobre o aborto é, em suma, o debate sobre o roubo de um futuro. Pessoalmente, confesso que ainda não encontrei nenhuma resposta convincente para justificar esse roubo.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo.
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