terça-feira, 15 de abril de 2014

Síria, lucros & perdas


Na guerra civil da Síria, revolucionários heroicos lutam para instituir democracia em lugar de cruel ditadura. Verdade? Mentira?
Programas de propaganda & desinformação de hoje não criam mentiras evidentes, mas as constroem com elementos ambíguos de verdade. É verdade, por exemplo, que o atual governante sírio, Bashar al-Assad, mantinha estabilidade mediante rigorosa repressão. Também é verdade que há mais de século interesses estrangeiros se intrometem nas governanças do Levante.
Em 1916, Inglaterra e França assinaram o acordo secreto Sykes-Picot para repartir entre si o território do Império Otomano (ou Turco), aliado da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Até hoje exploram lucrativas "áreas de influência" na região.
Em dezembro, o presidente francês, François Hollande, foi à Arábia Saudita bajular o rei Abdullah. (Nenhum dos dois levou consortes: Hollande buscava então acobertar sua infidelidade a duas mulheres, e o rei mantinha suas esposas, umas 20, em recatada reclusão.)
Hollande vendeu ao rei US$ 3 bilhões em armas. Vai entregá-las ao exército libanês para combater o Hizbullah, que defende refugiados palestinos e é aliado de Assad. Arábia Saudita e outras petromonarquias medievais do Oriente Médio têm cooperado com Israel e Estados Unidos na desestabilização de todo o Oriente Médio. Entre outros interesses, prevenir coordenação de forças modernizadoras que afrouxem a subordinação dos reinos petrolíferos a interesses euroamericanos e israelenses.
Há mais contra Assad: 1) O regime sírio é meio secular, tolera cristãos e moda feminina ocidental. Isso escandaliza Wahhabi e Salafi, ultradireita sunita que é o poder por trás do trono saudita. 2) O gás da plataforma continental do leste do Mediterrâneo, disputada por Chipre, Israel, Líbano, Síria, Turquia e territórios palestinos.
Para a Europa centro-oriental, sempre foi incômodo depender da Rússia para o gás que a conforta nos invernos. Daí o interesse pelo gás mediterrâneo, negócio no qual sobressai o influente petrogrupo israelense Delek (valor de mercado: US$ 3 bilhões). Quando o Líbano pleiteou sua parte desse gás junto à ONU, o chanceler israelense Avigdor Lieberman rosnou implícita ameaça: "Não lhes daremos uma só polegada [da área reclamada]". Israel ocupou Gaza em 2008 para confiscar direitos palestinos à plataforma.
Além de jazidas submarinas, a Europa também cobiça outras no Levante. Problema: gasodutos e oleodutos que as ligassem à Europa por terra teriam de cruzar território sírio. Mais uma razão para tirar Assad do caminho. Ao custo, até agora, de devastação maciça, 150 mil mortos, 2 milhões de refugiados, privações horrendas, ódio amargo.
Não basta. Em janeiro, o Congresso dos Estados Unidos aprovou em sessão secreta mais armas para rebeldes sírios. Em termos de direito internacional, o ato configura agressão. Mas talvez valha para o mundo inteiro o exemplo histórico de arrogância imperial dado pela secretária de Estado assistente Victoria Nuland no contexto da crise da Crimeia: "Que se foda a União Europeia!". Só?
O primeiro-ministro Tayyip Erdogan é suspeito de ter facilitado à frente al-Nusra acesso ao gás sarin que em agosto matou centenas de civis em Ghouta. Intenção: incriminar Assad e provocar intervenção direta dos Estados Unidos no conflito. Agora, animado por recente êxito eleitoral, Erdogan cogita de invadir a Síria. Menos de 2% dos turcos são árabes, pouco lhes importa que sangue e petróleo árabes jorrem baratos.


Texto de Aldo Pereira, na Folha de São Paulo

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