Qualquer que seja o resultado na Câmara amanhã, é patente que o país está outra vez dividido, como em 1964. Ficaram para trás os detalhes, confusões, equívocos, tropeços e trapalhadas dos últimos 15 meses. Os polos voltam a se confrontar. Mas quem radicalizou?
Desde que a presidente Dilma Rousseff tomou a trágica decisão de adotar o programa do adversário, serrando o galho no qual estava sentada, logo após a reeleição em 2014, abriu-se período de inversões. O Executivo de centro-esquerda cortava o seguro-desemprego. Os neoliberais do PSDB votavam contra o fator previdenciário. Contudo, por forças de certas circunstâncias, o ciclo lulista de conciliação acabou, a luta de classes retornou ao centro do cenário e os atores reocupam os lugares originais.
Na contagem prévia dos sufrágios parlamentares, vê-se que o único apoio sólido que restou a Dilma está à esquerda do centro. PT, PC do B, PDT e o PSOL formam o núcleo duro dilmista. Com exceção de um ou outro partido, os demais se encontram na articulação do impeachment. A surpresa está em que coube ao pivô do centro, o PMDB, dividir as águas.
A decisão chave foi tomada pelo presidente da Câmara em dezembro passado, ao considerar aceitável pedido de impedimento frágil e insuficiente. No entanto, a ousadia do questionável Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sempre considerado ponto fora da curva no mundo peemedebista, teria ido para o lixo histórico caso outros três fatores não tivessem se acoplado. Dentre eles, o propriamente político foi a traição de Temer.
Primeiro ocorreu a inflexão da Lava Jato. Sergio Moro, face visível de sistema pouco transparente de decisões, escolheu abandonar o papel neutro de juiz para intervir no jogo partidário ao autorizar a condução coercitiva de Lula e, depois, divulgar gravação entre ele e a atual mandatária. Tornou suspeito o esforço anticorrupção realizado desde 2014, colocando-se na ponta de operação para criminalizar o PT.
O segundo fator foi a extraordinária amplitude que a televisão deu às acusações antipetistas. A partir daí, as pífias manifestações a favor do impeachment em dezembro de 2015 converteram-se nas enormes manifestações de massa de março de 2016. Nada, contudo, teria se efetivado caso o PMDB, comandado pelo vice-presidente da República, tivesse cumprido a missão conciliadora que afirma perseguir.
Em lugar de isolar Cunha e promover o acordo que Lula sempre buscou, Temer levou o seu partido à liderança do golpe constitucional que tenta afastar a alternativa popular não só do governo como da luta pelo poder. Desta vez, diferentemente de 1964, não há um Brizola, à esquerda, que se possa acusar de ter posto fogo no circo. Os centristas o fizeram.
Texto de André Singer, na Folha de São Paulo.
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