Bons tempos aqueles em que um manifestante podia ir à rua e exclamar apenas: "Marco Feliciano não me representa!"
Assistindo à votação do impeachment domingo à noite (17), percebi que há uns 300 "Marcos Felicianos" na Câmara dos Deputados. Era um tal de falar em Deus, cristandade, família e pecuária que me senti em outro país, em outra época, em outro universo mental.
Mas também, o que mais eu poderia querer? Pertenço à minoria das minorias, a da esquerda caviar... Humpf.
Já havia algo de errado, naturalmente, em dizer "Marco Feliciano não me representa". Claro, não é função dele. Tem de representar os seus eleitores, e ninguém mais.
Os deputados que votaram pelo impeachment não fizeram a coisa certa, a meu ver. Mas é inegável que estavam representando o seu eleitorado. Seriam traidores se aceitassem participar do jogo fisiológico encetado por Lula e Dilma nestas semanas.
Certamente, a hipocrisia foi grande quando falavam em combater a corrupção. Não querem nem podem combatê-la. Segundo a Transparência Brasil, 273 dos congressistas já foram citados na Justiça ou em algum Tribunal de Contas.
Honestidade não é o forte dessa turma. Por mais que o PT tenha exagerado com seus marqueteiros, tesoureiros, mensaleiros e petroleiros, há partes iguais de crise econômica real e anticomunismo imaginário no movimento pelo impeachment.
Isso tudo já foi dito.
Tento não desprezar a maioria dos deputados, todavia.
Na maior parte dos votos pelo impeachment, falaram de Deus, dos familiares e de sua cidade natal ou região do Estado a que pertencem.
O que isso significa? Entendo, e tenho até certa simpatia, quando mencionam a mãe, o neto, os filhos que são "a razão de minha vida". É ridículo, ibérico, sentimental, mas é o melhor que eles podem oferecer.
Num momento de grande emoção e de inegável importância política, levam à tribuna o que mais prezam no mundo; seu valor máximo é a própria família. Bandidos ou raposas, se há algo que os regenere ou explique, será o olhar, hum, dos seus entes queridos.
Que vocabulário, Marcelo! Que o leitor me perdoe esta fraqueza...
Passo a outra característica das declarações de voto.
As localidades mais variadas deste imenso país tiveram seus instantes de glória. De Poleiro das Antas a Brejal das Trevas, de Quatro Patas a Calhordina, de São Finório a Propinópolis, bases eleitorais de Sul a Norte foram invocadas em favor do impeachment.
O que isso significa? Defensor do voto distrital misto, não posso automaticamente reclamar do fato de tantos deputados se referirem a suas bases geográficas.
O problema não é que sejam eleitos, na maioria, em função de alguma referência municipal ou regional. Poderia ser assim no voto distrital misto, para baratear as eleições e tornar mais palpável o espectro das opções em jogo para cada eleitor.
Acontece que, em primeiro lugar, os partidos aparentemente não têm limites para o número de candidatos que colocam à disposição dos votantes: entre quinhentos ou mil nomes possíveis, muito eleitor vota em quem conhece, e não em quem poderia preferir.
Em segundo lugar, e este ponto não é muito lembrado, deve ser imenso o número de cidades no país que depende diretamente de verbas federais. Os gastos do governo, quando não se dirigem a grandes obras ou programas universais como Previdência ou Bolsa-Família, dispersam-se em migalhas que, a rigor, deveriam estar ao encargo dos Estados ou dos próprios municípios.
Com ministérios e órgãos federais administrando torneirinhas que pingam conforme o deputado X ou Y estende sua caneca, a regionalização, o fisiologismo, a ausência de compromissos partidários ou ideológicos mais firmes se torna inevitável.
Acredito que muitos deputados simplesmente não entendam as críticas de fisiologismo que lhes são dirigidas. Afinal, trabalham (ou seja, arranjam verbas) para suas comunidades. Precisam, além disso, de dinheiro para se eleger.
O sistema produz, portanto, esses deputados, bandidos ou não. Além de interesses paroquiais, o que mais podem defender? Ah, sim, eles também procuram algo de universal, de mais amplo em seu discurso: abrem os braços, e sem conhecer Keynes ou Milton Friedman, encontram Deus.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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