Mark Twain disse não se espantar com o fato de a realidade ser mais estranha do que a ficção: afinal, a ficção tem que fazer sentido. Uma história deve ter personagens e conflitos coerentes com o universo criado, evoluindo através de uma relação de causa e efeito até chegar a um clímax ao mesmo tempo surpreendente e inevitável.
Rick parece um homem cínico que só quer tocar o seu bar em Casablanca, sem resvalar nas turbulências da política e do amor. Mas eis que entra no boteco a belíssima Ilsa Lund, descobrimos que Rick é um ex-combatente da resistência francesa que teve o coração partido por Ilsa, o encontro reacende a chama política e amorosa e no fim Bogart, o falso descrente, tem que optar entre fugir nos braços da Ingrid Bergman ou sacrificar o romance para ajudar na luta contra o nazismo.
Se na última cena, no aeroporto, Rick matasse os nazistas com raios laser lançados pelos olhos ou o filme virasse um musical tipo "Todos Dizem Eu Te Amo", do Woody Allen, o público vaiaria: a ficção precisa fazer sentido.
Já a realidade não tem pé nem cabeça. O acaso tem um peso descomunal, infinitas causas interagindo podem resultar em infinitos efeitos, musicais viram terror, Godard descamba pra Pernalonga, personagens agem de modo contraditório, Woody Allen é acusado de pedofilia e Ingrid Bergman –vai saber?– ainda pode aparecer na Lava Jato. Tenho pensado muito sobre o enredo troncho da vida olhando para o filme estranhíssimo que leva de junho de 2013 a abril de 2016.
Treze de junho daquele ano, em São Paulo, cinco mil manifestantes de esquerda protestam contra o aumento de R$ 0,20 nas tarifas do transporte público. A Polícia Militar desce o sarrafo. Os celulares filmam a violência. Dia 17 de junho, cem mil pessoas de esquerda, de direita, de cabeça, de canela, bicicleta, bunda e calcanhar saem às ruas de São Paulo.
Algumas em solidariedade aos manifestantes do dia 13. Outras contra o governo Dilma. Outras contra o governo Alckmin. Uns com camisa do PT, outros com camisa da seleção. Uma parte da passeata vai protestar contra a Globo. Outra parte vai cantar o hino diante da Fiesp. De lá pra cá, a turma da Fiesp cresceu, o amarelo superou o vermelho, o MPL (Movimento Passe Livre) deu lugar ao MBL (Movimento Brasil Livre) e o que começou com a utopia de uma cidade para todos talvez termine com o país no bolso do PMDB.
Claro que não se pode ignorar os erros políticos e econômicos da Dilma, a corrupção, os caninos sempre afiados da oposição. Talvez, não fosse por este caminho, o governo se esfacelasse por outro.
Mesmo assim, não consigo parar de pensar: e se não tivesse existido o aumento de R$ 0,20? E se aqueles 5 mil não tivessem se manifestado? E se a polícia não tivesse descido o sarrafo? E se os celulares não tivessem filmado?
Bom, talvez assistíssemos a um governo péssimo, mas não à tragédia dos últimos meses. Tragédia, digo, não no sentido grego, pois aquelas obras tinham que fazer sentido, como sabia Mark Twain e mais ainda Aristóteles, que explicou as regras da narrativa em sua "Poética", 335 anos antes de Cristo dar o ar de sua graça e 2.351 anos antes de Eduardo Cunha e Michel Temer darem o ar de suas desgraças, ajudando o Brasil a escrever, neste domingo, mais uma página do seu enredo torto, por linhas tortas.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
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