Em tese, o PSDB é um partido de ideias, relativamente coeso, laico, progressista e social-democrata. Mas a coisa deve ser mais complicada.
Enfim, isso eu aprendi numa pequena polêmica com o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN). A polêmica, além de me instruir sobre a diversidade do partido ao qual ele pertence, serve-me de ocasião para expor algumas ideias básicas sobre o que significa, para mim, criticar a ideologia dominante.
Primeiro, para a gente se entender: chamo de ideologia dominante o conjunto de ideias, valores e crenças que, num dado momento histórico, prevalecem e, com isso, administram a vida concreta de uma comunidade. Isso, claro, de uma maneira que não é maciça e sempre é uma zona de conflitos (salutares).
Numa visão marxista um pouco ingênua e datada, a ideologia dominante seria o instrumento de poder de uma classe. Hoje, parece prudente pensar que as ideologias sequer precisam servir interesses econômicos, elas são poderes autônomos.
Os intelectuais que defendem a ideologia dominante não precisam pensar muito. Basta-lhes propagar os valores que já são administrados pela maioria dos aparelhos ideológicos (a mídia, a escola, a igreja, a padaria, os partidos"¦).
Entre esses valores, na ideologia ainda dominante hoje, destacam-se a família como comunidade supremamente importante, a religião, um pouco de consumismo (ninguém é de ferro) e, enfim, a repressão de orientações, fantasias e desejos sexuais que se afastem da norma estatística aparente: transem só a dois, só com seu casal, e mesmo assim nem muito, porque São Paulo não gosta (São Paulo, entende-se, o apóstolo, não a cidade –porque a cidade gosta).
O deputado Marinho acha que eu sou um intelectual orgânico do outro lado, do lado do proletariado, ou seja, do diabo. Se ele tivesse me dito isso uns 50 anos atrás, eu me sentiria orgulhoso e ficaria tão alegre que poderia lhe dar um beijo (não se preocupe, deputado, só na bochecha).
De fato, esta foi uma questão dificílima para os militantes de esquerda dos anos 1960:
1) As produções artísticas da suposta "cultura proletária" não eram melhores do que os gostos artísticos de Hitler ou Mussolini: um realismo simplório;
2) A grande cultura do século 19 e 20, a dita "cultura burguesa", era para nós um patrimônio irrenunciável;
3) Qual cultura queríamos, então, para nosso futuro? Dizíamos que a própria cultura burguesa seria transformada numa sociedade livre (sem classes, imaginávamos). É claro que não fazia sentido, mas era bonito.
Hoje, encontrei um jeito de entender qual é a cultura que eu gostaria que fosse hegemônica e pela qual estou disposto a lutar. Não me pergunto se Thomas Mann é burguês, e Zola, proletário (isso sempre me pareceu ridículo)
O que faz a diferença entre a cultura que defendo e a que não quero é o tipo de hegemonia. Explico. Uma cultura sempre acaba gerindo vidas concretas. Mas, atenção:
Existe um tipo de cultura hegemônica pelo qual todos devem se comportar segundo o figurino. Esse tipo de cultura, em geral, apresenta suas ideias e valores como se não pertencessem à história, mas fossem verdades eternas, conformes a uma pretensa "natureza". Esse tipo de cultura é perigosa porque, em regra, seus exponentes perseguem nos outros os desejos que eles mal conseguem reprimir neles mesmos. A repressão é severa e impiedosa porque seu alvo verdadeiro é o próprio inquisidor, que gostaria de se reprimir a qualquer custo.
A cultura pela qual eu luto tenta propor a menor gestão das vidas possível. Ela é inspirada por um grande valor (o maior talvez) da cultura burguesa (desde os libertinos do século 17 até hoje): a ideia de que, na vida privada, cada um pode encontrar os prazeres de sua vida livremente –óbvio, com o consentimento dos que o acompanham.
Em suma, a diferença entra a cultura da qual gosta o deputado Marinho e a que eu prefiro é a seguinte. Para o deputado Marinho, não se conformar aos valores de sua cultura significa praticar, suponho, "a adoração do ídolo" e a destruição moral do povo brasileiro.
Enquanto, na hegemonia da cultura que defendo, ninguém forçaria o deputado Marinho a correr com os lobos e as lobas, transar com travestis ou casar com transexual –de fato, ninguém sequer o criticaria por ele ser monógamo, abstinente ou bem casado e religioso.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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