domingo, 8 de novembro de 2015

O que realmente entrou em crise?

Dentro da narrativa hegemônica construída para explicar a crise brasileira encontra-se a tentativa de afirmar que o grande vilão é o Estado. Conta-se, em todos os meandros dos cadernos de economia dos jornais e na boca de seus analistas, que o primeiro governo Dilma teria "feições estatistas e intervencionistas" responsáveis pelo descalabro final das contas públicas e orçamentos com previsão de deficit. A crise que hoje vivemos seria assim a prova do fracasso gerencial do capitalismo de Estado brasileiro, não restando outra coisa do que aceitar, de vez, a boa e sã cartilha do liberalismo.
Há, no entanto, várias ilusões de ótica neste raciocínio.
Primeiro, chamar o governo Dilma de estatista e intervencionista é dificilmente defensável. Até onde consta nos anais destes últimos anos, seu governo privatizou (com o estratagema da "privatização branca" das concessões) aeroportos, rodovias, portos e ferrovias. Ele ainda abriu a exploração do pré-sal para empresas estrangeiras, entregando 60% da maior reserva de petróleo da camada salina para quatro empresas estrangeiras e contrariando, com isto (para variar), promessas de campanha.
Acrescente ao bolo uma política de desoneração e redução de impostos que produziu uma renúncia fiscal de R$ 327,16 bilhões entre 2011 e 2015. Gostaria de saber em que lugar do mundo um conjunto de políticas desta natureza seria chamado de estatista e intervencionista.
Na verdade, este debate procura esconder o que realmente entrou em crise atualmente.
A dicotomia liberalismo X estatismo que parece comandar boa parte do nosso debate é uma falácia. O capitalismo nunca foi liberal. Ele simplesmente oscila em sua história, respondendo a pressões de conflitos sociais e da força de interesses setoriais sobre como regular e mediar demandas.
Não lembro de nenhum destes economistas com Adam Smith no coração reclamar de o governo norte-americano, em plena crise de 2008, usar dinheiro público para salvar bancos privados como o Citibank. Também não consta que algum deles tenha reclamado da Comunidade Europeia despejar dinheiro público em seu combalido sistema financeiro, permitindo que tal dinheiro fosse usado até para pagar "stock options" de executivos cujo maior feito de suas capacidades gerenciais fora quebrar bancos. O que não é de se estranhar, já que a questão liberal nunca foi "como diminuir o Estado", mas "como privatizar o Estado, colocando-o a serviço dos interesses dos empresariados nacionais ou da classe de financistas".
Nós já vimos isto ocorrer milhares de vezes em terras brasileiras. Basta lembrar como o "liberal" governo FHC usou dinheiro do contribuinte para salvar bancos falidos através do Proer. Ou, se quisermos ser mais estruturais, basta se perguntar sobre a origem da dívida pública brasileira, cuja parte substancial é resultado da transformação de dívidas privadas de empresas e bancos em dívidas públicas.
Quer dizer, no capitalismo, o Estado sempre intervém. A única questão real é: "A favor de quem?".
Neste sentido, mais honesto seria lembrar que o modelo em crise atualmente no Brasil é outro.
O que entrou em crise foi a crença de ser possível "gerenciar" o capitalismo brasileiro com ajustes pontuais que permitiriam recuperar um modelo de "pacto no interior do Estado" entre empresários, sistema financeiro e sindicatos. Modelo cujas raízes encontram-se no sistema de equilíbrio de moldes getulistas.
Se a bomba explodiu na mão da esquerda nacional é por seus setores hegemônicos terem acreditado que era seu destino ressuscitar tal modelo, com direito até a foto com mão suja de petróleo em poço da Petrobras. Melhor teria sido escapar da falsa dicotomia entre capitalismo estatista e capitalismo liberal.
Nestes últimos meses, o Banco Itaú anunciou o maior lucro líquido na sua história entre abril e junho, a saber: R$ 5,9 bilhões só em um trimestre. Cifra praticamente igual ao seu lucro do terceiro trimestre. O Bradesco teve R$ 4,12 bilhões de lucro líquido no terceiro trimestre.
Quem quiser entender a crise brasileira deveria se perguntar como um país com economia em contração pode ter lucros bancários tão exorbitantes.
Longe de um contradição, temos atualmente uma relação de causalidade necessária. Pois não é difícil perceber quem realmente comanda o Estado. 


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

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