Vinha-se falando, ao longo de toda a crise política, que apesar de tudo as instituições da democracia estavam funcionando. Supremo, Senado, Câmara, Ministério Público, Polícia Federal –nem falemos das Forças Armadas–, todos estavam dentro do seu próprio papel.
Acho que o quadro mudou.
São claros os sinais de mau funcionamento, de limites rompidos, de algo próximo ao vale-tudo. Manhas e artimanhas, como disse Dilma Rousseff nesta segunda-feira? Ou uma sucessão de quase-golpes?
Primeiro, o próprio impeachment. Para quase todos os participantes, a favor ou contra, o caso das pedaladas e dos decretos serve mais ou menos como um pretexto. Pouca gente acredita com sinceridade que as trapalhadas contábeis de Dilma Rousseff foram de fato decisivas na crise econômica ou na vitória do PT nas eleições.
Ainda neste sábado, um defensor do impeachment, o senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, publicou artigo na Folha ligando alhos com bugalhos num mesmo parágrafo.
"Sustenta-se", disse ele, "que a presidente editou seis decretos, abrindo créditos suplementares sem a autorização do Congresso Nacional". Na frase seguinte, ele afirma: "No total, foram cerca de R$ 96 bilhões".
Não. O próprio relatório de Antonio Anastasia, aprovado na comissão do impeachment com o voto de Aloysio, calcula em no máximo R$ 1,8 bilhão o impacto dos decretos. Talvez até menos, concede Anastasia.
Ou seja, por mais errado que tenha sido emitir os tais decretos, no fundo pouca gente está ligando para tais detalhes. Tira-se Dilma porque se quer tirar, e se não for por esse motivo, ora, arranja-se outro.
Se isso, para mim, já parece golpe, vejo que se trata apenas do primeiro da série.
O segundo "quase-golpe" vem do Supremo Tribunal Federal, afastando Eduardo Cunha da Câmara dos Deputados. Baseou-se numa série de evidências e de indícios, sem dúvida: denúncias de corrupção, casos de manobra no conselho que decide sua cassação.
Nada, ou quase nada, a meu ver, era relevante no argumento principal para afastá-lo: o de que se impunha fazer isso "com urgência" para que ele não atrapalhasse as investigações que o envolvem.
Urgência como, se o pedido para seu afastamento se arrastava desde dezembro? Atrapalhar o quê, se as investigações seguem na Polícia Federal e no Ministério Público? O que Cunha estava atrapalhando, sem sombra de dúvida, era seu próprio processo de cassação –dentro da margem de manobras possível, numa questão interna do Legislativo.
O STF afastou Cunha porque queria afastá-lo. Porque "não dava" para ele continuar presidente da Câmara sem verdadeiro escárnio à instituição. Mas interferiu claramente, na minha opinião, sobre outro Poder da República.
Se quiser, poderia então afastar a própria presidente, se esta se livrasse do impeachment. Não se diz que ela tentou "obstruir a Justiça" nomeando Lula para o ministério? O STF afastará Renan Calheiros, afastará quem bem entender: há dezenas ou centenas de deputados enrolando e dificultando as coisas para a Justiça por aí.
Vem uma terceira tentativa de "quase-golpe", com o novo presidente da Câmara tentando anular uma votação feita por mais de dois terços dos deputados.
Os argumentos de José Eduardo Cardozo e Waldir Maranhão (PP-MA) a respeito de irregularidades no encaminhamento do impeachment não têm solidez nenhuma.
A fúria de Hélio Bicudo e Janaina Paschoal pouco se fundamenta num problema contábil.
Milhões de pessoas não vão às ruas porque tal e tal artigo da Lei da Responsabilidade Fiscal terá ou não terá sido infringido.
A unanimidade do STF contra Eduardo Cunha teve a perfeição de um serviço por encomendas. Veio por via expressa, como as correrias de um motoqueiro fazendo zigue-zague no congestionamento.
Cada um dos três Poderes afasta-se do outro, quer decidir no lugar do outro, e, o que me parece ainda mais grave, sem nenhuma "sinceridade institucional". Segue o próprio arbítrio, inventa seus próprios casuísmos, fabrica pretextos.
Leis, processos, Constituição se transformam numa papelada, que não interessa a ninguém. Ou melhor, só interessa quando serve num dia; no dia seguinte –contra Temer, por exemplo– logo se dirá o contrário do que se dizia. Papelada? É a República do Papelão.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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