terça-feira, 24 de maio de 2016

Biblioteca Nacional argentina será presidida por discípulo de Borges

Biblioteca Nacional argentina será presidida por discípulo de Borges


SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES

Quando era adolescente, Alberto Manguel, 68, trabalhou na livraria Pygmalion, na avenida Corrientes, em Buenos Aires, dedicada a títulos em idiomas estrangeiros.
Filho de pai diplomata, Manguel nascera na Argentina, mas passara a infância no exterior e, portanto, falava inglês fluentemente. Não demorou muito para ser descoberto pelo mais famoso frequentador do espaço, o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986).
Naquela época, o autor de "O Aleph" já vinha perdendo a visão, e então convocou aquele livreiro jovem, culto e bilíngue para ler para ele, em voz alta, os clássicos em inglês que ele já não podia revisitar sozinho.
A experiência marcaria o rapaz para o resto da vida. Manguel se transformaria em autor, professor e bibliófilo.
Como num enredo literário, os destinos de Manguel e Borges voltam a se entrecruzar. Em julho, Manguel assumirá o posto que foi de seu mestre no passado: o comando da Biblioteca Nacional argentina. Borges foi diretor da instituição de 1955 até 1973.
O acaso poético traz alegrias e desafios ao autor de "A Biblioteca à Noite", "Uma História da Leitura" e coautor do "Dicionário de Lugares Imaginários" (todos lançados aqui pela Companhia das Letras).
Primeiro, será um retorno à Argentina desse intelectual que, pouco antes da ditadura, migrou para o exterior, naturalizou-se canadense, radicou-se na França e passou a dar aulas em universidades dos EUA.
"Voltar a Buenos Aires é estranho. Quando alguém deixa um lugar no qual aconteceram coisas importantes -no caso, minha adolescência-, esse lugar vira, na memória, um cenário que vai se modificando para acomodar as lembranças que vamos fabricando para nos consolarmos de estarmos longe.
Vamos mudando tanto essa geografia, do mesmo modo como mudamos a cara de uma pessoa que no passado amamos e já não vemos há tempos, que, quando voltamos a encontrá-la, já não a reconhecemos. Sinto que não volto para a minha Buenos Aires, mas, sim, a uma nova cidade, que devo descobrir e aprender a amar", disse Manguel à Folha.
Já o desafio fica por conta do clima político em que Manguel assume a principal biblioteca do país, maior órgão cultural da Argentina e que, durante o kirchnerismo, abrigou os intelectuais que apoiavam a presidente Cristina Kirchner, o chamado grupo Carta Abierta.
Ao assumir a governo, em dezembro de 2015, o novo mandatário, Mauricio Macri, com o objetivo de "desideologizar" o aparato cultural, promoveu uma série de demissões em instituições geridas pelo Estado. A Biblioteca foi um dos alvos mais atingidos, com mais de 200 demissões.
Foi por isso que, há três semanas, quando Manguel viajou a Buenos Aires para participar da Feria Internacional del Libro, espantou-se com os protestos dos ex-funcionários, orquestrados com as manifestações de outros demitidos pelo Estado, contra o presidente Macri.
"Sob minha direção, a Biblioteca não alojará nenhuma entidade política-cultural específica", afirmou. A resposta sobre como enfrentar o ambiente a princípio hostil à sua chegada, como um indicado de Macri, Manguel ainda não possui. "O futuro dirá."
Em meio a críticas e protestos, Manguel se refugiou na literatura, e em seu discurso na Feira do Livro falou do legado de Miguel de Cervantes, cujos 400 anos da morte são celebrados neste ano.
"Temos muito que aprender com Dom Quixote, que não era um leitor encerrado em seu quarto. Saiu ao mundo para colocar em ação o que os livros tinham lhe ensinado. Precisamos de mais intelectuais curiosos e ativos como ele."

BRASIL

Uma das boas notícias é que a mudança fará com que Manguel se aproxime mais do Brasil. Seu novo livro, "Una Historia Natural de la Curiosidad", será lançado pela Companhia das Letras em agosto, quando o autor virá ao país para participar do aniversário de 30 anos da editora.
Além disso, segundo ele, o fortalecimento da relação da Biblioteca Nacional argentina com as da América Latina será sua prioridade. "Queremos nos aproximar das estrangeiras. Com a do Rio [Biblioteca Nacional] já temos um acordo, mas quero aprofundá-lo, e também estabelecer um vínculo com o Instituto Moreira Salles", contou.
Apesar de ser um escritor muito ligado ao mercado editorial nos EUA e na América Latina, e um bibliófilo obsessivo -possui uma biblioteca particular de 40 mil títulos, na casa onde viveu muitos anos no vilarejo de Mondion, no interior da França-, Manguel crê que uma biblioteca tem de mostra que sua responsabilidade é bem distinta da lógica da indústria cultural.
"Uma biblioteca pública deve ser inclusiva e seguir o modelo da biblioteca de Alexandria. Uma editora é um comércio, uma biblioteca é um repositório da memória."
Questionado sobre a intensa relação da Argentina com a leitura, que na proporção de títulos lançados e livros lidos por habitante é maior do que a de países mais populosos da América Latina, como Brasil e México, Manguel aponta para a história do país para oferecer a resposta.
"A Argentina foi um local que atraiu intelectuais em vários tempos, fugidos de guerras ou crises econômicas e sociais de distintos países. Herdamos grandes leitores da França e da Itália no fim do século 19, judeus europeus durante o terror nazista da Segunda Guerra (1939-1945), refugiados espanhóis da Guerra Civil naquele país (1936-1939). E muitos desses imigrantes fundaram editoras ou abriram livrarias. Obviamente, durante a ditadura militar (1976-1983), muito desse trabalho foi destruído, mas, ainda assim, o leitorado argentino de hoje deve muito aos que vieram a esse país buscando refúgio no passado."
Mesmo assumindo a biblioteca, Manguel seguirá dando aulas em Princeton e em Columbia, "portanto creio que vou ter de aprender a escrever em aviões, ficarei por um bom tempo viajando entre Buenos Aires e Nova York."
Para o apartamento na capital argentina que está alugando com as ajuda das irmãs, levará poucos livros. Basicamente, "uma 'Divina Comédia' edição de bolso que sempre levo comigo e um volume de Rudyard Kipling (o romance "Stalky & Co") que Borges me deu de presente. É o mesmo volume que ele leu quando era adolescente".
E o resto de sua imensa biblioteca pessoal? "Ficou em caixas, num depósito, na França, aguardando o dia de sua ressurreição."


Reprodução da Folha de São Paulo

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