quinta-feira, 5 de março de 2015

Querer viver e querer morrer

"Sou Valentina Maureira, tenho 14 anos e sofro de fibrose cística. Peço para falar urgente com a presidente, porque estou cansada de viver com essa doença e ela pode me autorizar a tomar uma injeção e dormir para sempre."
Esse apelo foi gravado e postado nas redes sociais por uma jovem chilena. O vídeo se tornou viral (http://migre.me/oRmeH).
O governo do Chile respondeu que a lei do país não permite que o pedido seja atendido. A presidente, Michelle Bachelet, visitou Valentina. E todos prometeram "apoio".
A fibrose cística é uma doença genética cujo diagnóstico, 50 anos atrás, era uma condenação à morte. Hoje, graças a cuidados médicos diários e à possibilidade de transplante pulmonar, o prognóstico chega a 40 anos de vida.
Suponho que Valentina, de sua maca de hospital, perguntaria: 40 anos com que qualidade de vida?
Depois da visita de Bachelet, disseminou-se um sentimento de alívio na imprensa mundial: Valentina e suas perspectivas estariam melhorando. Mas de onde veio esse alívio?
1) Preferimos acreditar que o sofrimento do outro seja o efeito de uma falta de amor: dessa forma, podemos imaginar que nossa simpatia e nosso afeto sejam panaceias.
2) Pouco nos importa respeitar a infelicidade ou a vontade de morrer dos outros; o que queremos preservar é nossa (suposta) capacidade de fazer os outros felizes.
3) Quando descobrimos que um outro (sobretudo um próximo) não quer viver mais, nossa primeira preocupação é com nossa impotência: como é possível que nosso amor não seja suficiente para que ele ou ela queira viver? Aceitar a vontade de morrer do próximo seria aceitar o fracasso de nosso amor por ele.
4) Para a Igreja Católica, desde o século 5º (Concílio de Arles), o suicídio é um tremendo pecado contra a vida, que é um presente de Deus.
Mais tarde, outro concílio aumentou a dose e decidiu que os sobreviventes de tentativas de suicídio seriam excomungados.
Cá entre nós, se Deus quisesse que a gente nunca tivesse vontade de morrer, Ele se preocuparia em fazer com que a vida de todos valesse a pena; seria mais eficiente do que excomungar os suicidas.
5) Inventamos que a vontade de morrer ofende a Deus para evitarmos admitir que o suicida não achou que nós fossemos uma boa razão para ele continuar vivendo.
6) Em suma, com a "melhora" de Valentina, podemos voltar a acreditar que o amor basta para dar vontade de viver a quem se sentir amado. Queremos acreditar nisso ainda mais quando se trata de uma criança ou de um adolescente.
Há um ano, a Bélgica tornou possível a eutanásia de menores.
Escrevi sobre o fato (http://migre.me/oRpKf), comentando que a lei belga talvez fosse "o começo do fim de nosso jeito louco e narcisista de amar as crianças –ou seja, daquele amor que diz: como é que nossas crianças poderiam ser infelizes (pior, desejar a morte), se nós existimos e as amamos?".
E concluí: "Os legisladores belgas souberam colocar as crianças antes das necessidades narcisistas dos adultos –reconheceram que ela não é obrigada a querer viver só para que a gente se sinta bem".
Procurando o vídeo de Valentina, esbarrei nos da Exit e da Dignitas, as associações suíças de assistência ao suicídio. Para mim, eles são perturbadores. Por quê?
Não estranho o fato de que as pessoas que se suicidam diante da câmera pareçam estar ótimas –algumas até capazes de fazer brincadeiras na hora de tomar seu barbitúrico final. Imagino facilmente a alegria maníaca que a perspectiva da morte iminente pode suscitar em quem sofre além da conta.
Se mal consigo assistir a esses vídeos até o fim é porque, de alguma forma, eu também me sinto responsável, como se tivesse o dever de fazer que essas pessoas, apesar de sua dor, amassem a vida.
Ou seja, como se eu devesse ser, para todas elas, uma razão de viver. É a ampliação da ideia infantil de que nossa presença ao mundo deveria bastar para que nossa mãe fosse totalmente feliz.
Alguém me pergunta: e se alguém se arrepender depois de tomar seu veneno? Tem como voltar?
Não. Mas receio mais o caso inverso. Se, numa doença degenerativa, eu espero demais, posso passar da fase em que ainda conseguiria me matar ou convencer os outros a me ajudarem a morrer.
Para essa questão, esperando a estreia do filme "Para Sempre Alice", em 12 de março, veja o livro homônimo de Lisa Genova (Nova Fronteira).


Texto de Contardo Calligaris, publicado na Folha de São Paulo

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