quinta-feira, 5 de março de 2015

Um olhar dentro de Guantánamo: EUA prendem mais que Alemanha de Hitler

O senador Tom Cotton, um republicano do Arkansas, ganhou as manchetes em 5 de fevereiro quando intimidou um funcionário do Pentágono, enviado pelo presidente Barack Obama para argumentar a favor de solturas adicionais de Guantánamo. "O único problema com Guantánamo é que há camas e celas vazias demais ali no momento", disse Cotton. "Nós deveríamos estar enviando mais terroristas para lá para interrogatório, para manter este país seguro." O senador, um ex-militar, prosseguiu: "Para mim, cada um deles pode apodrecer no inferno, mas enquanto não fazem isso, eles podem apodrecer em Guantánamo".

Após os ataques de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos expandiram enormemente seu arquipélago de prisões e campos. Algumas eram prisões secretas mantidas pela CIA (a agência de espionagem americana), que também enviava prisioneiros para agências de inteligência estrangeiras, especialmente na África e no Oriente Médio. Havia uma rede de prisões militares, incluindo Bagran, no Afeganistão, e Abu Ghraib, no Iraque. E havia Guantánamo, um campo em uma base naval americana no sudeste de Cuba, que há muito estava ocioso, depois de receber refugiados do Haiti uma década antes.

Considerado um local para prender "detidos de alto valor" (os de valor mais alto eram mantidos escondidos pela CIA), um local convenientemente próximo dos Estados Unidos, porém além de sua jurisdição, Guantánamo recebeu seus primeiros presos em 11 de janeiro de 2002. Sua população carcerária atingiu o pico 18 meses depois. Àquela altura, eram mais de 680 detidos sob guarda. Provenientes de 48 países, a maioria vinha do Afeganistão, Arábia Saudita, Iêmen e Paquistão. Até onde podemos dizer, todos eram muçulmanos. Hoje, restam 122, entre eles um mauritano, Mohamedou Ould Slahi.

Quando Slahi chegou em Guantánamo em meados de 2002, ele era considerado um dos principais suspeitos do planejamento dos ataques do 11 de Setembro. Mas após um período doloroso de interrogatório, seus captores concluíram que ele não tinha mais nada a lhes dizer e permitiram que escrevesse sobre suas experiências. Eles certamente não o encorajaram a publicar seus pensamentos, mas graças a seus advogados, o manuscrito foi recuperado das entranhas do Pentágono. O resultado, completo com trechos censurados, é "Guantánamo Diary", um relato fascinante do que a Anistia Internacional chamou de "o gulag de nossos tempos". Ele fornece uma visão de dentro devastadora de uma forma intensa e incomum de encarceramento na qual os Estados Unidos brigam com sua visão do inimigo e seus valores constitucionais. Slahi, apesar de sua soltura ter sido ordenada por um juiz federal, permanece na prisão, aguardando pela apelação do governo. Ele já está preso há mais de 12 anos.

Slahi aparenta ser uma pessoa inteligente, irônica e tolerante. Mas também com uma queda por se associar com as pessoas erradas –ao menos na visão da inteligência americana. Em 1991, após ter estudado engenharia na Alemanha, ele viajou para lutar com os mujahedeen no Afeganistão, onde jurou fidelidade a Osama Bin Laden e se juntou à Al Qaeda. Isso por si só, segundo a postura pós-11 de Setembro do governo Bush, servia como base para detê-lo, apesar de que, em 1991, a CIA é que bancava os mujahedeen na luta deles contra o regime afegão pró-soviético.
O cunhado de Slahi era uma figura importante na Al Qaeda, que em 2001, segundo o depoimento de três suspeitos de terrorismo, era contrário ao plano de Bin Laden de atacar os Estados Unidos. Slahi não exercia um papel tão proeminente. Fora uma ou duas vezes ter ajudado seu cunhado a transferir dinheiro para a família dele na Mauritânia, e posteriormente hospedar por uma noite três outros membros da Al Qaeda que estavam indo da Alemanha para o Afeganistão, ele aparentemente tinha pouco a ver com seus ex-companheiros. Cansado de estar sob vigilância da inteligência alemã, Slahi se mudou para Montreal no final de 1999. Um mês depois, um membro da mesquita onde ele conduzia as orações foi pego com explosivos enquanto tentava cruzar a fronteira para os Estados Unidos. O nome dele era Ahmed Ressam e foi condenado em 2001 por seu papel na tentativa de atentado a bomba conta o Aeroporto Internacional de Los Angeles, na Noite de Ano Novo de 1999 –o chamado "plano de ataque do milênio".
Slahi foi colocado sob vigilância, mas nem a inteligência canadense e nem a alemã encontraram evidência de que ele conhecia Ressam. Mesmo assim, quando estava a caminho da Mauritânia, Slahi foi preso no Senegal a pedido das autoridades americanas e interrogado sobre seu suposto papel no plano. Agentes da inteligência senegalesa e mauritana pressionaram Slahi, da mesma forma que o FBI, mas não encontraram nenhum indício de seu envolvimento e ele foi solto. De volta à Mauritânia, ele se reuniu à sua família e começou a trabalhar em uma empresa de informática. Então ocorreu o 11 de Setembro e mais interrogatórios. Na primeira vez ele foi autorizado a voltar para casa. Mas em novembro de 2001, depois dos mauritanos e do FBI novamente o interrogarem, ele foi entregue para a CIA e enviado para a Jordânia para mais interrogatório. Em julho do ano seguinte, ele foi enviado para Bagran e depois, em agosto, para Guantánamo.

Meses de interrogatório se seguiram, a maioria duramente por agentes da inteligência militar, seguindo as "técnicas de interrogatório reforçadas" aprovadas pelo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.

Uma das características mais notáveis de Guantánamo é seu custo: entre 2002 e 2014, os Estados Unidos gastaram US$ 5 bilhões no campo. Mas há pouco a mostrar pelo dinheiro. Definir os presos como combatentes inimigos em vez de prisioneiros de guerra permitiu ao governo Bush ignorar a Convenção de Genebra enquanto realizava seus interrogatórios com níveis cada vez mais extremos de brutalidade, mas o resultado não foi nem inteligência confiável, nem casos processáveis. No início de 2005, um promotor sênior concluiu que dos 500 presos mantidos na época em Guantánamo, não mais que 30 tinham "verdadeiro valor processável"; todos os demais envolviam evidência que virtualmente qualquer tribunal consideraria invalidada pela coerção.

Mas os Estados Unidos não carecem de interrogadores experientes. Há dezenas, se não centenas, na polícia e no FBI, que foram usados em casos anteriores de terrorismo. Mas a rivalidade interagências permanecia intensa após o 11 de Setembro, e envenenava o resultado tanto quanto o fracasso original em impedir o ataque. Ansiosos em não ficar em um papel inferior à CIA, Rumsfeld adotou procedimentos visando ajudar os militares a suportarem tortura se capturados e os empregou de forma reversa, para que as técnicas de maus-tratos atribuídas durante a Guerra Fria aos norte-coreanos e outros agora formassem a base para os interrogatórios em Guantánamo. Outras técnicas usadas foram forçar os prisioneiros a permanecerem pendurados por horas, expô-los a frio extremo, impedi-los de dormir por dias, deixá-los nus, humilhá-los e ameaçá-los, ou obrigá-los a ouvir heavy metal repetidamente no máximo volume. ("Bodies", um sucesso de 2001 de banda texana Drowning Pool, com o refrão repetido "Deixe os corpos cair no chão", era um das músicas favoritas em Guantánamo.) Essa estratégia ignorava a evidência, acumulada por analistas, de que essas técnicas não funcionavam muito bem para fazer militares capturados divulgarem informação sensível.

Rumsfeld e seus colegas estabeleceram tribunais militares fora dos sistemas regulares da Justiça civil e militar por acreditarem, equivocadamente, que permitiriam condenações mais rápidas. Na verdade, uma série de decisões adversas da Suprema Corte e, mais recentemente, a publicação do relatório do Senado sobre tortura pela CIA, transformaram esses tribunais militares em um pesadelo legal caro. Em 9 de fevereiro, uma audiência em Guantánamo para cinco supostos planejadores do 11 de Setembro foi suspensa pelo juiz militar quando um dos acusados, Ramzi Bin al Shibh, alegou que seu tradutor era um agente da CIA que o torturou em uma prisão secreta.

Em consequência, os Estados Unidos sofreram um dano imenso à sua reputação como Estado limitado pelas leis e princípios de sua Constituição. A natureza da lei está no coração do problema. (A Sexta Emenda à Constituição americana garante "o direito a um julgamento público e rápido".) A Suprema Corte determinou a aplicabilidade da lei americana aos detidos, mas muitos ainda enfrentam detenção por tempo indeterminado.

Durante o caso Dreyfus na França no final do século 19, a prisão de um homem inocente se tornou uma causa célebre. Não ocorreu resposta comparável dentro dos Estados Unidos. Pelo contrário, grande parte do público americano é contrário à ideia de fechar Guantánamo e, desde 2007, essa oposição cresceu de cerca da metade para dois terços. Obama venceu a eleição de 2008 prometendo fechar a prisão, mas não gastou o capital político necessário no início de sua presidência. Agora pode ser tarde demais.

A verdade é que os Estados Unidos ficam estranhamente à vontade com o encarceramento como meio de lidar com seus males. Não apenas eles prendem mais pessoas per capita do que quase qualquer outro país no mundo, como os mantêm presos por mais tempo e com maior probabilidade de uso de confinamento solitário. O impulso punitivo é profundo: segundo estatísticas do Escritório de Justiça dos Estados Unidos, os Estados Unidos prendem proporcionalmente entre três ou quatro vezes mais pessoas do que a Alemanha de Adolf Hitler às vésperas da guerra. Por essa perspectiva, o que Guantánamo resume não é tanto o problema dos Estados Unidos com a tortura, mas sua postura em relação às prisões. Alguém pode esperar que os eleitores façam objeção à detenção por tempo indeterminado sem julgamento quando aceitam tão facilmente penas que condenam pessoas –particularmente aquelas de certa etnia– a décadas em confinamento solitário ou sentenças que chegam a centenas de anos?

O senador Tom Cotton parece estar mais próximo ao pulso da nação do que o presidente. O relato de Slahi, com seu diálogo kafkiano e sua habilidade extraordinária de humanizar esse ambiente deliberadamente desumanizado, é um indiciamento devastador dessa complacência. Se Cotton pensa que o inferno é outro lugar, o feito de Slahi é nos mostrar aquele que os Estados Unidos já criaram aqui.

Texto de Mark Mazomer publicado na Prospect, reproduzido no UOL.

*Mark Mazower é professor de história da Universidade de Columbia e autor de "Governing the World".
Tradutor: George El Khouri Andolfato

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