Uwe Timm nasceu em 1940, em Hamburgo. Fazendo as contas, o que não é difícil, vejo que fará agora 75 anos. Não é uma idade tão avançada assim, nos tempos de hoje. Suas lembranças, entretanto, parecem, às vezes, vir da pré-história.
Veja-se, por exemplo, um dos episódios que ele conta em "À Sombra do Meu Irmão", texto autobiográfico lançado agora pela editora Dublinense (160 págs., R$ 34,90).
A Segunda Guerra tinha acabado, e o pai de Uwe Timm ia prosperando na profissão de peleteiro --apesar de seu mínimo conhecimento na confecção de casacos de mink, de raposa ou de chinchila.
Os ganhos da época do "milagre alemão" permitiram ao patriarca da família comprar um carro verde, do ano de 1939, tido como objeto de luxo naquela época.
O sucesso era tanto que os guardas de trânsito reconheciam o motorista --e o cumprimentavam. Em reconhecimento, a mãe de Uwe Timm dava presentes de Natal, todos os anos, para os aplicadores de multa.
É como se estivéssemos numa cidadezinha americana de 10 mil almas. Só que era a Hamburgo do pós-guerra --ainda destruída, por certo, mas com cerca de 1,5 milhão de habitantes.
Outra cena de infância, também surpreendente, aparece no final do livro. Um menino anda de patinete --fica implícito que se tratava do próprio autor-- na ciclovia. Aparentemente, isso era proibido.
Um ciclista sem nenhum parentesco, e muito menos aviso, dá um tabefe na criança, que se estatela no chão. Uma passante assiste à cena e diz: "bem-feito!"
O caso ilustra, segundo Timm, os profundos hábitos de violência e de opressão que sobreviviam na Alemanha do pós-guerra.
Uma geração antes --é a mãe do autor a vítima da história-- aconteciam coisas como a que se segue.
A menina adorava batatas fritas. Um dia, quando a madrasta estava fora de casa, ela tomou a iniciativa de fazer o prato sozinha. Petulância inaceitável. O castigo foi ficar um ano sem batatas fritas, tendo de ficar à mesa, assistindo aos outros comerem à vontade.
Vê-se em ponto pequeno o que significavam, para as gerações alemãs mais antigas, o culto da disciplina e o sistema do desrespeito à infância.
Ao mesmo tempo, o caso dos presentes de Natal para os guardas de trânsito não trazia, presumo, nenhuma sugestão de propina: é ainda uma homenagem à autoridade.
Com o toque provinciano, "feliz", à moda dos anõezinhos da Branca de Neve --que também é, a meu ver, uma especialidade alemã.
O enigma do "caráter nazista" foi estudado, naturalmente, por muitos autores. Uma das melhores coisas de "À Sombra do meu Irmão" está no fato de que Uwe Timm trata esse problema da forma mais íntima, mais cuidadosa possível.
O irmão dele era bem mais velho --Timm mal se lembra dele. Um vago vulto loiro, que aparece de surpresa atrás do armário e levanta o menino no ar.
"Não consigo me lembrar do rosto", diz o autor na primeira página do livro, "nem do que ele vestia, provavelmente uniforme (...)".
Uniforme? Sim, o irmão era da SS. Não se tratava de um vigia de campos de concentração; estava num batalhão de combate e morreria em 1943. Deixou cartas e um diário.
O texto de Uwe Timm funciona como uma bomba-relógio, adiando e antecipando milimetricamente as revelações que, em nossa imaginação, pelo menos, estão contidas nesses documentos.
Numa carta, seu irmão conta que acaba de conseguir uma excelente pistola. "Você precisa ver como atiro com ela, melhor do que com o fuzil. Sabe aquelas pequenas peças de porcelana nos postes de telefone, derrubo uma a uma", vangloria-se.
Arremata em seguida: "agora, querida mãezinha, fico por aqui. Escreva para mim de novo em breve".
No diário de campanha, não há tempo para tais ambiguidades. Um russo fumando ao longe vira "um banquete para minha MG".
O mais extraordinário do trecho --e isso não é especificamente alemão-- é a mistura de selvageria e inocência que acomete tantos jovens na experiência de guerra.
Coisas hediondas serão contadas, por outros personagens, no mesmo tom; o livro é econômico em atrocidades, mas sabe apresentá-las no momento exato.
Com o ponto de vista particular de quem está ao mesmo tempo longe e muito perto da geração nazista, Uwe Timm trata da brutalidade com o máximo de delicadeza, de inteligência e de cuidado. Sem dúvida, é o melhor método que se pode ter.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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