terça-feira, 6 de setembro de 2011

'Há diferença entre o autorizado pela ONU e o feito pela Otan'

'Há diferença entre o autorizado pela ONU e o feito pela Otan'

Ex-relator da ONU para direitos humanos, Richard Falk vê um precedente perigoso no uso de resolução para mudar regime

Professor de Princeton diz ser "inaceitável" que Tribunal Penal Internacional indicie apenas um dos lados
MARINA MESQUITA 
DE SÃO PAULO

"Não é um precedente muito proveitoso permitir que, por meio de um mandato insuficiente, se intervenha da forma como se interveio." 
Esse é o diagnóstico de Richard Falk, 81, professor emérito da Universidade de Princeton e ex-relator da Organização das Nações Unidas para os direitos humanos, sobre a ação militar da Otan (aliança militar atlântica) na Líbia. 
"Houve uma lacuna entre o que foi autorizado [pelo Conselho de Segurança] e o que foi realmente feito", disse Falk àFolha, em entrevista por telefone. 
 

Folha - Como o senhor vê a afirmação de que o humanitarismo é o "ismo" do século 21? 
Richard Falk -
 É uma distorção da realidade. As ponderações humanitárias são utilizadas pelos países interventores e organizações internacionais para justificar o uso da força. Mas, geralmente, as motivações principais são poder e interesse. O humanitarismo é um fator marginal da forma como as relações internacionais são conduzidas. Países que têm muito petróleo são mais suscetíveis à intervenção.
Como avalia a aplicação das Convenções de Genebra às "novas guerras"? 
É difícil estabelecer a aplicação dessas convenções -que regem o direito internacional humanitário e são base da aplicação do direito internacional penal- quando um dos combatentes não é um ente estatal, não usa uniforme adequado e não respeita a ideia de proteger civis. A aplicação das Convenções de Genebra às novas guerras é complexa, pois cada conflito tem suas características.
No caso da Líbia? 
As convenções devem orientar tanto a conduta da Otan, como a do regime de Muammar Gaddafi e a dos rebeldes. De acordo com as informações que temos, todos são suscetíveis a serem acusados de crimes de guerra. 
A Otan bombardeou civis; Gaddafi usou armamentos contra sua própria população, cometeu um crime contra a humanidade, e os rebeldes também são acusados de ter violado as leis de guerra.
Por que foi emitida ordem de prisão apenas contra Gaddafi? 
É inaceitável que o TPI tenha indiciado o inimigo no meio de uma guerra que é conduzida pela Otan. 
Para mim, essa iniciativa é um julgamento político. Na Guerra de Kosovo, [Slobodan] Milosevic também foi indiciado enquanto a Otan bombardeava. Tenho a impressão de que os indiciamentos são a favor do Ocidente e as violações cometidas pela Otan não são submetidas ao mesmo rigor. Isso prejudica a legitimidade do TPI. É preciso haver igualdade de tratamento.
A intervenção na Líbia respeitou os limites da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU? 
A resolução pretendia proteger os civis líbios. No entanto, o objetivo da Otan foi equilibrar uma guerra civil e concretizar uma mudança no regime. Houve uma lacuna entre o que foi autorizado e o que foi feito. 
Quando países como Rússia e Brasil se abstiveram na votação, estavam apenas demonstrando suas dúvidas sobre o limite da resolução. 
É provável que a Rússia e a China, se soubessem o que estava sendo planejado, teriam usado seu poder de veto.
Mas parece ter chegado ao fim uma ditadura. Neste caso, os fins não justificam os meios?
Do ponto de vista legal, acabar com um regime ditatorial contrariando o direito internacional é prejudicial. Não é um precedente muito proveitoso permitir que, por meio de um mandato insuficiente, se intervenha da forma como se interveio sob a justificativa de evitar o que se disse ser um massacre iminente em Benghazi. 
Mas se o país não for transformado para favorecer as companhias de petróleo e as empresas europeias, pode ser um exemplo.
Há chances de que a Líbia se torne um Estado falido [sem autoridade central]?
Sim. O futuro da Líbia é tão incerto que é muito possível que o CNT [Conselho Nacional de Transição] não consiga o controle e a coesão política.


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