quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Todo o mundo está precisando de férias de si próprio

 Todo o mundo já tinha escolhido a pessoa que queria ser, e todos tinham erguido monólito sólidos e convincentes. Os amigos todos eram fanáticos por algum time, craques em algum esporte, obcecados por algum desenho animado.

Todos eram alguma coisa, muitas vezes mais de uma, e ainda assim fazia sentido. Eles eram. Eu tentava ser.

Gostava do Fluminense por causa das cores, mas não conseguia gostar o bastante pra torcer, berrar, sofrer por isso de tal modo que isso virasse eu mesmo e as pessoas dissessem: “ele é tricolor”.

Fingia torcer, claro —mas não sem culpa. Também gostava dos Beatles, mas não tanto quanto o meu amigo Bruno, que já ocupava o posto de beatlemaníaco. Às vezes forçava a barra —“sou beatlemaníaco!”, dizia. Não convencia ninguém. O papel já estava tomado. Todos os Cavaleiros do Zodíaco também já tinham dono.

Na adolescência, desisti de fabricar uma personalidade e tentei encontrar alguma que já estivesse pronta. Os sitcoms ofereciam um cardápio de almas pré-fabricadas. Escolhi a minha como quem escolhe um prato. “Acho que sou uma mistura do Ross, do 'Friends', com o George Costanza, do 'Seinfeld'”, resolvi.

Passei a gostar de bandas que ninguém conhecia, só pra ser alguém que ninguém mais era. Lembro de chegar em casa exausto de passar horas tentando ser uma coisa nova que ninguém nunca tinha sido antes.

Até que, do dia pra noite, você começa a enxergar os bastidores do mundo. A maquiagem da sua mãe começa a escorrer e você percebe que “mãe” era só um dos papéis que ela interpretava, além de irmã, filha, neta, chefe, empregada, namorada, ex-mulher.

Você abre a porta do camarim e vê seu pai tentando atochar uma calça de super-homem que já não cabe. O mundo, que antes parecia um episódio de “X-Men”, se transforma no "Mutantes" da Record. O texto não faz sentido, o elenco está mal escalado, nada mais convence.

Olhe ao seu redor. Ninguém faz a menor ideia do que está fazendo aqui. Por isso as pessoas fazem mapa astral, e se tatuam, e penduram bandeiras na janela: pra tentar lembrar do personagem que escolheram ser.

E por isso também se apaixonam, e se casam, porque encontraram no olhar de outra pessoa um personagem que parece fazer sentido. E por isso também se separam, porque cansam de fingir que são aquela pessoa que o outro inventou.

Por isso, também, o isolamento entristece: faz meses que estamos vivendo um mesmo personagem. Todo o mundo está precisando de férias de si próprio.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

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