quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Ela chamou a polícia por uma ameaça neonazista. Os neonazistas estavam dentro da polícia

 Seda Basay-Yildiz estava longe de casa, viajando a trabalho, quando recebeu um fax assustador no hotel: “Sua porca turca imunda, vamos matar sua filha”, dizia a mensagem.

Advogada alemã de origem turca, especializada em casos envolvendo terrorismo islâmico, Basay-Yildiz estava acostumada a receber ameaças da extrema direita. Mas essa, que chegou numa noite de agosto de 2018, era diferente.

Assinada com as iniciais de um antigo grupo terrorista neonazista, a mensagem continha o endereço de Basay-Yildiz, uma informação que não era pública devido às ameaças anteriores dirigidas contra ela. O remetente tivera acesso a um banco de informações protegidas pelo Estado.

“Entendi que eu precisava levar a ameaça a sério. Eles tinham nosso endereço, sabiam onde minha filha vivia”, Basay-Yildiz recordou em entrevista. “Por isso, pela primeira vez, chamei a polícia.”

A iniciativa não a tranquilizaria muito: uma investigação não tardou a mostrar que a informação havia sido obtida de um computador da própria polícia.

extremismo de direita vem ressurgindo na Alemanha de maneiras novas e também muito antigas, assustando um país que se orgulha de enfrentar seu passado assassino honestamente.

Um inquérito parlamentar conduzido ao longo de dois anos concluiu neste mês que redes da extrema direita penetraram extensamente os serviços de segurança alemães, incluindo as forças especiais de elite.

Cada vez mais, porém, a atenção se volta à polícia alemã, uma força muito mais espalhada, descentralizada e com supervisão menos rigorosa que os militares —e, avisam analistas, que tem impacto muito mais imediato sobre a segurança dos cidadãos no dia a dia.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a maior preocupação dos Estados Unidos, seus aliados e dos próprios alemães foi que a força policial do país nunca voltasse a ser militarizada, politizada ou instrumentalizada por um regime autoritário como a Gestapo.

O policiamento passou por uma revisão fundamental na Alemanha Ocidental após a guerra, e hoje os recrutas da polícia em todo o país são ensinados com detalhes minuciosos sobre o legado vergonhoso da polícia sob o regime nazista —e como isso informa a missão da polícia hoje.

Mesmo assim, a Alemanha vem sendo assolada por revelações sobre policiais em diferentes pontos do país que formaram grupos baseados numa ideologia comum de extrema direita.

“Sempre torci para que fossem apenas casos individuais, mas agora eles estão em número grande demais para isso”, comentou Herbert Reul, ministro do Interior da Renânia do Norte-Vestfália, o estado mais populoso do país, onde 203 policiais estão sob investigação por ligação com incidentes de extrema direita.

Para Reul, o alarme soou em setembro, quando foi descoberto que 31 policiais de seu estado compartilharam propaganda neonazista violenta. “Foi quase uma unidade policial inteira, e descobrimos por puro acaso”, disse Reul. “Fiquei chocado. Isso não é algo trivial.”

“Temos um problema com o extremismo de direita”, afirmou. “Não sei até onde vai seu alcance no interior das instituições. Mas, se não o combatermos, vai crescer.”

O extremismo de direita vem crescendo a cada mês.

Os 31 policiais em questão foram suspensos em setembro por compartilharem imagens de Hitler, memes de um refugiado em uma câmara de gás e um negro sendo abatido a tiros. O chefe da unidade havia participado do chat.

Em outubro um grupo de chat racista com 25 participantes foi descoberto na polícia de Berlim depois que um policial soou o alerta, frustrado porque seus superiores não estavam tomando uma atitude. Em separado, seis cadetes foram expulsos da academia de polícia de Berlim por terem minimizado o Holocausto e compartilhado imagens de suásticas em um grupo de chat que tinha 26 outros membros.

Uma delegacia de polícia na cidade de Essen, no oeste do país, foi invadida em novembro depois que imagens de munição e bancos dispostos para formar suásticas foram encontradas em um bate-papo no WhatsApp.

Na semana passada foi descoberto um chat violento de extrema direita com quatro policiais nas cidades de Kiel e Neumunster, no norte da Alemanha. Munições e memorabília nazista foram descobertas em operações de busca e apreensão na casa de dois policiais.

Muita atenção tem sido voltada ao estado de Hesse, onde vivem Basay-Yildiz, residente em Frankfurt, e vários outros alvos de alto perfil de ameaças neonazistas.

Seda Basay-Yildiz está intimamente familiarizada com a discriminação na Alemanha.

Quando ela tinha 10 anos, seus pais, trabalhadores turcos com estadia temporária na Alemanha, levaram Seda com eles para servir de intérprete quando quiseram contratar seguro para seu carro. O vendedor se negou a atendê-los. “Não queremos estrangeiros”, disse a eles.

“Depois daquilo, decidi que queria saber que direitos eu tenho na Alemanha”, contou Basay-Yildiz. Ela foi à biblioteca, identificou um órgão junto ao qual registrar queixa e conseguiu para seus pais o seguro que eles procuraram.

Assim descobriu o que queria fazer na vida.

Basay-Yildiz ganhou destaque como advogada quando representou os familiares de um vendedor de flores turco abatido a tiros ao lado de sua barraca de flores. Ele foi a primeira vítima do National Socialist Underground, conhecido como o NSU, grupo terrorista neonazista que matou dez pessoas, nove das quais imigrantes, entre 2000 e 2007.

Forças policiais em toda a Alemanha atribuíram os crimes a imigrantes, deixando de reconhecer que os responsáveis eram neonazistas procurados pela polícia, enquanto informantes pagos pelo serviço de inteligência ajudaram a ocultar os líderes do NSU. Os arquivos sobre os informantes foram destruídos pelo serviço de inteligência dias depois de a história vir a público com grande impacto em 2011.

Após um julgamento que se prolongou por cinco anos e só terminou em julho de 2018, Basay-Yildiz conquistou uma indenização modesta para seus clientes, mas não aquilo que eles mais queriam: respostas.

“Qual era o tamanho dessa rede e quais instituições do Estado tinham conhecimento dela?”, perguntou Basay-Yildiz. “Depois de 438 dias no tribunal, ainda não sabemos.”

Três semanas após o término do julgamento, ela recebeu a primeira ameaça por fax. As ameaças não pararam de chegar desde então. Basay-Yildiz representa precisamente o tipo de mudança na Alemanha que a extrema direita rejeita profundamente.

Mas ela não é a única. Computadores policiais em Hesse já foram usados para buscar dados sobre a humorista turco-alemã Idil Baydar e sobre uma política de esquerda, Janine Wissler —ambas receberam ameaças. O presidente da polícia no Estado deixou de divulgar o fato durante meses. Em julho, foi forçado a renunciar a seu cargo.

A maioria das ameaças, incluindo as dirigidas a Basay-Yildiz, vêm na forma de emails assinados “NSU 2.0”.

Desde 2015 o governo estadual de Hesse vem investigando 77 casos de extremismo de direita em sua força policial. No verão deste ano (que acontece no meio do ano no hemisfério norte) foi nomeado um investigador especial cuja equipe estuda unicamente as ameaças enviadas por email.

Quando os investigadores descobriram que os dados de Basay-Yildiz tinham sido buscados em um computador da primeira delegacia de Frankfurt uma hora e meia antes de ela receber a ameaça, o policial logado nesse momento foi suspenso. A delegacia inteira foi revistada, e computadores e celulares foram analisados, levando à suspensão de outros cinco policiais. Mais tarde, esse número chegou a 38.

Basay-Yildiz não se sente mais tranquila por isso.

“Quando você tem 38 pessoas, você tem um problema estrutural”, ela explicou. “E se você não entende isso, nada vai mudar.”

Outros também receiam que a infiltração das fileiras policiais leve a perigos especiais para a Alemanha, incluindo a subversão sorrateira de instituições de Estado cuja finalidade declarada é servir e proteger a população.

“Esses chamados à resistência feitos a servidores públicos constituem uma tentativa de subverter o Estado por dentro”, disse Stephan Kramer, diretor da agência de inteligência do estado da Turíngia, no leste. “O risco de infiltração é real e precisa ser levado a sério.”

Como as Forças Armadas, a polícia também vem sendo agressivamente cortejada pelo partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD) desde sua fundação em 2013. Quatro dos legisladores do AfD no Parlamento federal são ex-policiais –quase 5%, contra menos de 2% no caso de todos os outros partidos políticos.

A penetração das instituições do Estado, especialmente as que portam armas, tem sido parte da estratégia do AfD desde o começo. Especialmente no leste do país, uma vertente mais radical do AfD já fez incursões profundas na força policial.

Björn Höcke, professor de história que se tornou político incendiário e lidera o AfD na Turíngia, já apelou várias vezes a policiais e agentes de inteligência para resistirem às ordens do governo, que ele descreve como “o verdadeiro inimigo da democracia e liberdade”.

Há a questão de se a polícia é capaz de policiar-se adequadamente. Basay-Yildiz destaca que, apesar da existência de provas fortes no caso dela, os responsáveis não foram identificados.

O policial que estava conectado à estação de trabalho usada para acessar o endereço residencial de Basay-Yildiz e os nomes e aniversários de sua filha, seu marido e seus pais fazia parte de um grupo de WhatsApp que incluía meia dúzia de policiais que compartilhavam conteúdos racistas e neonazistas.

Uma imagem mostrava Hitler sobre um arco-íris com a legenda “boa noite, judeus”. Havia imagens de prisioneiros em campos de concentração e imagens zombando de refugiados afogados e pessoas com síndrome de Down.

Os policiais foram suspensos e interrogados. Eles apresentaram vários álibis —disseram que os pedidos de informação são tão numerosos que não conseguiam se recordar de terem acessado as informações. Ou que muitos policiais podem usar o mesmo computador.

A investigação ficou paralisada.

“Foi um absurdo”, disse Basay-Yildiz. “Só posso supor que não deram a esses suspeitos o mesmo tratamento que dariam a outros, pelo fato de serem colegas de trabalho.”

Para Basay-Yildiz, mais assustador que as ameaças é sua impressão crescente de que a polícia vem protegendo extremistas de direita em suas fileiras.

Nunca sequer lhe mostraram fotos dos policiais em questão, que permanecem suspensos com remuneração reduzida, ela disse.

As ameaças continuaram a chegar, às vezes a cada poucos meses, às vezes semanalmente. Basay-Yildiz se mudou com sua família para outro bairro. Seu novo endereço foi ainda mais fortemente protegido que o antigo. Computadores policiais comuns não podiam mais acessá-lo. Por 18 meses ela se sentiu em segurança.

Mas isso mudou no início deste ano: aqueles que a estavam ameaçando identificaram seu novo endereço e fizeram questão de comunicar isso a ela.

Desta vez a polícia voltou e disse que o endereço dela não havia sido acessado internamente.

“O círculo de pessoas nos serviços de segurança que têm acesso a minhas informações de contato é muito restrito”, ela destacou. Seria de se imaginar que isso facilitaria a identificação do responsável. Mas Basay-Yildiz não está otimista.

“Moro em Hesse”, ela explicou. “Todos vimos o que aconteceu aqui.”

Em fevereiro passado um atirador de extrema direita matou nove pessoas de origem imigrante em dois bares de imigrantes na cidade de Hanau, perto de Frankfurt.

Em junho de 2018, Walter Lubcke, político regional que defendera a política da chanceler Angela Merkel para refugiados, foi baleado fatalmente em frente à sua casa, duas horas a nordeste de Frankfurt, depois de receber ameaças de morte havia anos.

Basay-Yildiz recebeu a ameaça mais recente em 11 de novembro. A mensagem começou com “Heil Hitler” e terminou com “Diga oi à sua filha por mim”.

Quando ela denunciou a ameaça à polícia, o parecer desta foi que ela e sua filha não correm perigo concreto.

“Mas não posso mais confiar nisso”, disse Basay-Yildiz. “É um fator enorme de insegurança: em quem posso confiar? E a quem posso recorrer se não posso confiar na polícia?”


Reportagem de Katrin Bennhold, para o The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo. Tradução de Clara Allain. 

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