sábado, 5 de dezembro de 2020

Contos Bolsonaristas: novos clássicos do terrir brasileiro

 Estrada pintada de sangue

Enzo Gabriel nasceu com um pé mais pesado que o outro. A sinistra deformidade não era vista a olho nu. Calçava 43  desde o nascimento e, com o tempo, o corpo foi crescendo e se adaptando ao pé.

Acossado por um mundo comunista que não lhe oferecia oportunidades, Enzo construiu em 2013 seu primeiro automóvel usando centenas de tomadas de três pinos desmontadas. Em vez de gasolina, o carro de Enzo era movido pela poderosa combustão do ressentimento.

Corte para 2020. 

A caminho da Barra da Tijuca, Enzo Gabriel passa como um raio por uma viatura policial. A mais de 250 quilômetros por hora. A combinação do ressentimento aditivado com o pé pesado era uma afronta diária ao código de trânsito. Seu carro havia se transformado numa máquina mortífera. 

Dessa vez, a viatura emparelhou e exigiu que Enzo encostasse. Dois policiais armados berraram: “Cidadão, em quem o senhor votou na última eleição?”.

Enzo apontou para um adesivo de Bolsonaro no vidro traseiro. Imediatamente, os tiras baixaram a guarda. “O senhor está certo! O Estado não pode obrigar ninguém a andar devagar. Boa viagem!”

Enzo saiu cantando pneus. No caminho, amassou dois caminhões, atropelou uma galinha e uma senhora. Os policiais que o liberaram foram homenageados na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Doença macabra

O patriota Clóvis do Bole Bole contraiu o maldito vírus chinês. Numa noite, ofegante e febril, comeu uma jujuba vermelha. Passados três dias, estava melhor.

Clóvis do Bole Bole foi às rádios e TVs questionar os bilhões que estão sendo gastos em busca de uma vacina. Intuiu que havia uma grande conspiração das indústrias farmacêuticas junto da extrema imprensa para esconder da população o verdadeiro poder profilático da jujuba vermelha. 

Água nefasta

Assim que soube da descoberta de água na Lua, Ricardo  Salles sentiu uma estranha pontada no peito. Comeu um tuiuiú vivo para aplacar a dor. Em vão. Cortou uma samambaia.

Nada. O sentimento de vazio só foi confortado quando Salles investiu milhões no lançamento espacial de uma tocha para evaporar a água lunar.


Reprodução da coluna de Renato Terra, na Folha de São Paulo

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