domingo, 27 de dezembro de 2020

Períneo do calendário

 Dia 27 de dezembro é uma espécie de períneo do calendário festivo. Períneo, para quem não sabe —todo mundo sabe, só não sabe que se chama assim— é a pequena gleba no extremo sul do tronco e que lembra um estreito zíper, ou melhor, um zip-lock, ligando os órgãos sexuais a outro orifício originalmente não sexual, mas que também sido utilizado por boa parte da humanidade, desde sempre, para fins recreativos.

Dia 27 de dezembro: já passou o Natal, ainda não chegou o Réveillon. Sente-se cheiro do churrasco do vizinho. Nas ruas vazias um corredor solitário passa trotando. Com alguma sorte ainda se encontra um pescoço de peru embaixo de uma ameixa, no fundo do tupperware natalino. Eu gosto deste interregno.

Segundo o dicionário, “interregno” é, numa monarquia, o intervalo entre dois reis, “durante o qual o trono se conserva vago”. Dia 27, ninguém manda na gente, nem as atribuições familiares do Natal —ainda que remotas, em 2020— nem as reflexões do ano novo. “Tlec”: abre-se uma cerveja.

Sinto-me dentro daquela frase do John Lennon: “vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos”. Li na internet. Será mesmo do Lennon? Do Guimarães Rosa é que não é, ou seria: “Vida é enbrecha de aporteira: no vai que num vai da rangência é que afrondeia a indância”. Se fosse da Clarice Lispector, seria: “A vida é como uma espinha que espremo em busca dessa substância etérea e telúrica, ao mesmo tempo seiva e pus: eu dedo-espinha, nasço-morro, espremo-exprimo”.

Não se ofendam os amantes do Rosa e os devotos da Clarice —há tempos deixou de ser uma escritora e tornou-se uma seita. Tipo um Raul Seixas da literatura. Imagino um dos fiéis levantando numa aula de Letras e gritando, como o fã num show pedindo “Toca Rauuuuul!”: “Cita Clariiiiiiiice!”. Nada contra Raul, nem contra Clarice. Dois gênios, sem dúvidas. Os seguidores é que costumam ser meio malas. O mesmo vale pro camarada festejado três dias atrás.

Por que falo de Raul, Clarice, Jesus? Porque é dia 27 de dezembro. Períneo. Interregno. Lombra do calendário. Se a polícia literária me desse um enquadro agora e o guarda perguntasse “vindo de onde e indo pra onde?!” eu teria que dizer: não sei. Então mostraria meu documento de cronista e ele me liberaria com um muxoxo.

Muitos anos atrás, o editor e compadre Paulo Werneck e seu primo, Bernardo Esteves, hoje repórter de ciência, na Piauí, encartaram na revista literária Ácaro um “Alvará Poético”. Era a concretização da licença poética, para ser recortada e levada na carteira, como um brevê, um CRM a desculpar voos semânticos e diagnósticos nem sempre cirúrgicos da realidade.

Fico pensando agora se o “Alvará Poético” poderia ser apresentado pelo tio do pavê, nesta época em que ele ofusca as luzes natalinas e os fogos do ano novo com seu (troca)brilho. Poderia o trocadilho ser enquadrado como um subgênero da poesia? Antonio Candido, no maravilhoso “O direito à literatura”, coloca os provérbios como uma forma de poesia. Por que não o seria o “é pavê ou pacomê?”, que traz em si, aliás, essas duas coloquializações da norma culta, tão ao gosto de um Mario de Andrade? (Ou, pelo menos, de um tio dele).

Deixo aí a importante indagação literária, filosófica, até, para os Bakhtins de botequim. Uma reflexão digna de um domingo como hoje, 27 de dezembro. Nos vemos do outro lado do períneo: 2021. Que saibamos fazer uso recreativo do buraco que nos espera.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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